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segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

A velhinha

           
            Vocês não conhecem a velhinha que eu conheço. Pequenina, com cerca de um metro e 30 quilos, naquela fase da vida que a gente vai encolhendo, encolhendo, até sumir. Ela tem mil rugas na face, pescoço e braços. Rugas oblíguas, transversais, côncavas e convexas. Esculpidas em volta da boca, acentuadas e marcadas. São as cicatrizes da vida, que parecem contar histórias. É a vida que vai embora. A boca murchinha, virada para dentro, sem dentes. Olhinhos vivos, pretos e espertos.
            Ela se chama Angelina Maria e mora no Bairro Dom Almir. Sempre vem à minha porta pedir cobertor, blusa de lã e lençol. Sei que não devo, mas dou tudo. Explicam que dar esmolas tira a dignidade das pessoas, mas no caso da velhinha, penso:“E se fosse a minha mãe?” e não resisto. E Jesus disse: “em verdade eu vos digo, que tudo o que fizestes a um destes meus irmãos, mesmo aos mais pequeninos, é a mim que o fazeis”. Sei também que precisamos praticar a caridade e a compaixão. E que existem cerca de 14 milhões de brasileiros castigados pela miséria e pela fome.
            Acontece que um dia desses, ví a velhinha com uma trouxa enorme de coisas que ganhou. Um pensamento malicioso passou por minha cabeça: ” A velhinha está vendendo as coisas que ganha, não deve nem precisar de ajuda”. Depois, ela voltou e pediu outro cobertor. Criei coragem e disse que já tinha dado um para ela e que um cobertor dura uns 20 anos, que o meu já tinha 15 anos. Ela gemeu alguma coisa e foi embora.
            Passado alguns dias, volta a velhinha. O meu neto vai correndo atender à campainha, topa com a velhinha enrugada, dá um grito de terror e volta assustado. A velhinha quase morre do coração, desiste de pedir algo e vai embora, rápida e ligeira.
Mas nesta semana ela voltou. Chegou de vestido de chita estampado e lenço de seda cobrindo os cabelos brancos. Fui conversar com ela, olhar nos seus olhinhos miúdos. Pediu um lençol e uma fronha. Perguntei para quê e ela explicou, aos arranquinhos, balançando o pescoço enrugado, que o neto de 20 anos, Emerson, “mexe com estas porcarias que agora todo mundo mexe”, já foi preso pela polícia e está internado. Ela precisa levar a roupa de cama e participar das reuniões, pois a mãe é doente , manca de uma perna e tem desmaios. Disse que é analfabeta, teve oito filhos, três e o marido já morreram. Toma a limonada que levei e fala que sofre muito, muito. As pernas doem de tanto andar. Vem do Dom Almir de ônibus, de graça, pedir coisas no centro porque lá ninguém ajuda, todo mundo precisa. Pergunto quantos anos ela tem. Responde com olhar maroto, dando uma risada banguela, que tem quase cem. Depois de um longo papo, dou o lençol e a fronha e resisto ao ímpeto de chamá-la para morar comigo. Me ofereço para procurar algum abrigo para ela morar, mas ela diz que não pode, precisa cuidar da família. Vai embora com o vestido de chita balançando ao vento.
Penso na multidão de idosos desamparados, que não têm uma velhice digna. O envelhecimento em sí é um evento natural, onde as rugas na face poderiam contar histórias bonitas e os cabelos brancos deveriam ser homenageados e respeitados. Mas as rugas da Angelina Maria não contam histórias bonitas. São dores caladas que pedem esperança e dignidade. Logo ela vai voltar e ainda não sei o que vou fazer.

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