A cada dois dias tentarei colocar um texto novo, para manter o interesse dos meus leitores e também algumas fotos para exemplificar alguns textos. Obrigada pelo apoio.

domingo, 30 de janeiro de 2011

Como morrer no metrô

           
           Tenho um irmão que viaja muito, dando palestras no Brasil e no exterior. Ele é especialista em siderurgia e combustíveis fósseis. Passa por situações incríveis em suas andanças , como aconteceu no mês passado. Pedi-lhe que me contasse o caso e transcrevo aqui suas palavras.
“Quase Jesus me levou, de uma vez, para sempre. Claro que ninguém vai querer me escutar, mas foi assim. Peguei o metrô e fui o último a entrar. O metrô de São Paulo foi anunciado como o mais cheio do mundo. E olha que é mesmo. Estava tão cheio, mas tão cheio, que resolvi voltar para a plataforma. Assim que saí, a porta se fechou, mas minha bolsa ficou do lado de dentro e eu, com a mão esquerda enrolada e presa na tira da bolsa, do lado de fora. O metrô entupido. Gritei. Puxei a tira. Bati na porta. Um milhão de pessoas na plataforma, em volta de mim. Mas a porta não abriu porque a alça da bolsa, por ser fina, não ativou o sensor. O metrô, o trem, começou a andar e eu com a mão enrolada na tira da bolsa, preso ao trem.
Faço isso, enrolar a mão na tira da bolsa, para não me roubarem. Já me aconteceu duas vezes: em Tianjin, China, em 2005, quando meu dinheiro, meus cartões, minha vida, estavam dentro da bolsa. E no Aeroporto de Congonhas, neste ano, quando me roubaram tudo, tudo.
Fui então correndo junto com o metrô, antes que ele saísse voando, voando e, por sorte, consegui tirar minha mão da tira da bolsa. As pessoas me seguraram na plataforma e eu comecei a chorar. A bolsa continuou presa na porta, sem cair, a alça voando, voando, lá longe com o metrô. A tira da bolsa, ao vento, balançando, balançando...E sumiu. Pensei: “esta bolsa nunca mais eu vejo”. Pensei também que meu corpo poderia ter caído da plataforma e ter saído batendo pelos trilhos e dormentes do metrô, como carne moída, até que alguém puxasse o freio de emergência. Para isto, é preciso quebrar uma caixinha de plástico e puxar com força uma manivela. Quem vai quebrar aquela caixinha? Você vai ter um martelo em uma hora desta? Até aparecer alguém mais forte, eu já estaria morto, batendo nos dormentes, arrebentando a cabeça nos trilhos, sangue por todo lado, meu terno novo arrebentado. E quando o trem parasse, o cadáver estaria lá, e os ossos quietos, quietos. A gente morre é assim. Quando vê, já morreu. A mãe de um grande amigo meu sempre dizia: “morrer não é bom.”
Eu nasci de novo. Aí veio a segurança toda do metrô. Já que eu não tinha morrido mesmo, eles vieram me acudir, para eu não processar o metrô. Tentando pelos interfones, telefones e radio saber o que teria acontecido com a minha bolsa. Trouxeram um copo de água com açucar. Eu chorando e tremendo na plataforma. Arranjaram uma cadeira. Eu sentadinho, as pessoas me olhando. Veio uma moça correndo, dizendo que entregaram a minha bolsa na Estação de São Bento. A bolsa vazia, ou com as coisas dentro? Eu não sabia se ria ou se chorava. Só sabia que estava vivo. Peguei a bolsa, com tudo dentro, e entrei no metrô novamente. As pernas e lábios tremendo. Comum, triste, cinzento, pálido e apagado. Por que estas coisas só acontecem comigo? Lá fora, o sol brilhava em São Paulo.”
            Como diz o ditado, “se a vida lhe deu um limão, faça dele uma limonada.” Assim, um episódio de quase-morte pode dar uma história divertida.

quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Experiências nos States

Aniversário do netinho no parque, em Sacramento, California
              
Depois que minha filha se formou em Odontologia na UFU, decidiu cursar o Mestrado em Ortodontia na Universidade de Michigan, em Ann Arbor. Trabalhava e estudava. Foi babá de um bebê prematuro com tanto carinho, que a família a convidou para madrinha da criança. Também foi garçonete em um restaurante. Com sacrifícios e determinação, terminou o curso com louvor e fez inúmeras provas para obter a licença de trabalho como ortodontista. Hoje trabalha no que gosta, casou-se com um americano e tem um filhinho.
Assim, o Zé (meu marido), o filho adolescente e eu fomos visitá-los em Sacramento, na California. É sempre um aprendizado, misturado com apuros e aventuras. Entre outros, observei que as palavras que os americanos mais falam são “please”, “excuse-me”, “I’m sorry”. Na rua, cumprimentam educadamente. À tarde, saem para caminhar com os cães, presos em coleiras. Cada cão tem um “chip” implantado na pele do pescoço e um número de licença, chiquérrimo. Ninguém perde tempo passando roupa, saem amassadinhos mesmo. Os carros param nas esquinas para os transeuntes passarem (ah, se fosse aqui!). Para andar de trem, compra-se um “ticket” em uma “machine” e geralmente ninguém olha se você tem a passagem ou não (ah, se fosse aqui!). Nas piscinas públicas, há bolas e brinquedos variados para as crianças brincarem e ninguém carrega nada (ah, se fosse aqui!). As descargas dos vasos sanitários funcionam sozinhas. Nas lojas tem de tudo, como um aparelhinho que decifra o DNA do seu cãozinho e traça o tipo de personalidade dele. Nos caminhões de lixo, só tem o motorista, que maneja um guindaste tipo pinça, pega o latão de lixo (são todos padronizados, mesma cor e tamanho) e sacode dentro da caçamba (nada disso de garis correndo atrás do caminhão). Nas “freeways” (rodovias interestaduais), o asfalto é um tapete e existem seis pistas de cada lado, um show. Carros de todas cores e marcas, carrões luxuosos, carrinhos incrementados, caminhões incríveis.
Os parques municipais são lindos, gigantes, bem cuidados, com campos de golfe, quadras, lagos e cisnes. No bairro onde minha filha mora, toda casa tem uma árvore imensa na frente, bem maior que a casa. Coisa linda de se ver, sentir e viver (os vizinhos não brigam entre si por causa das folhas).
Além disso, as aventuras e os sufocos. Andando de carro, nos perdemos inúmeras vezes, mesmo com o mapinha com as “directions” (usar GPS era demais para nós). Nos restaurantes, o drama para pedir o prato certo, com tantos nomes e variações. No restaurante chinês, quando o Zé recebeu o biscoitinho da sorte, comeu tudo, com o papel enroladinho dentro (jamais vai saber o que a sorte lhe desejava). No aeroporto, o detector de metais que não parava de apitar quando o Zé foi revistado, um escândalo. O causador da confusão foi o envelope de um comprimido de Melhoral, perdido no bolso da calça. Coroando tudo, o aniversário do netinho, um piquenique no parque, com os avós sentindo que os netos são a recompensa de Deus por termos chegado à velhice. Ou então, que são a sobremesa da vida.
No retorno, um sentimento gostoso de chegar ao Brasil, a pátria amada com defeitos e qualidades. Mas a gente tem um choque quando chega em Uberlândia e encontra ruas inteiras praticamente sem árvores. Saudade do verde, da sombra, da beleza das árvores. E saudade dói.

Presentes

           
O ato de presentear é um dos mais antigos da humanidade. É uma forma de demonstrar carinho, interesse, expressar sentimentos, consolidar relações. Faz bem para quem dá e para quem recebe, sendo uma parte complexa e importante da interação humana. Mas nessa interação, surgem presentes de todo tipo e situações engraçadas. Como no caso do meu sobrinho, professor e pesquisador da UFMG, culto e distraído. Ele ganhou, no dia do seu aniversário, um lindo e enorme vaso de porcelana dos amigos que trabalhavam com ele. Quando chegou em casa, tarde da noite, viu que tinha esquecido o vaso na sua sala. Avisou à esposa que ia buscá-lo, pois ficaria constrangido, perante os amigos, se o vaso sumisse. Pegou um taxi e lá se foi para a Pampulha, bem longe de sua casa. Quando retornou, entrou em casa com cara de cansado e mãos abanando. A esposa, curiosa, perguntou: “E aí, onde está o vaso?”. E ele, batendo a mão na testa: “Nossa, esqueci dentro do táxi...”
Existem os presentes tradicionais, como flores, vinhos, cestas de café da manhã, chocolates. Outros mais criativos, como pacotes de aulas de dança, de massagens. Outros mais sublimes, como levar o velhinho de um asilo ao cinema ou as crianças de uma creche ao circo. Outros cheios de amor, como pacotes de carinho, abraços e beijos. Mas também existem aqueles que matam a pessoa de espanto ao abrir o presente e outros que matam de raiva. Sem falar nos presentes de grego (no paraíso, a serpente ofereceu uma maçã à Eva e deu no que deu). Outros, que você não tem a menor idéia do que fazer com eles, então vai passando pra frente. Faz um embrulho bem bonito, presenteia alguém e se sente feliz por ter encontrado uma utilidade pra ele. Até o dia em que, por um lapso, você acaba dando o presente para a mesma pessoa que lhe presenteou (aí, não tem perdão). Ou então, até o dia em que a pessoa descobre que você passou o presente dela pra frente. Acho que a minha norinha não me perdoa por isso. Ela trouxe um vinho delicioso do sul, para mim e meu marido. No dia do aniversário de um filho, embrulhei o vinho e dei para ele. A norinha estava na festa e reconheceu o vinho (por essas e outras é que existem tantas piadas sobre sogras).
Existem também os presentes que nos deixam sem fala, boquiabertos. Certa vez, uma aluna de Biologia, participante de convênio e natural de Angola, trouxe um presente da África para mim. Abri o lindo embrulho e meus olhos se esbugalharam de espanto, segurei um grito de terror na garganta. Era um colar de marfim, com bolas grandes esculpidas. Trêmula, toquei o colar com as mãos e senti o sangue dos elefantes mortos. Quase desmaiei (a aluna pensou que era de emoção). Até hoje, não sei o que fazer com ele (colocar no pescoço, só se for para me atirar no Ganges). Lembro-me de minha mãe. Ela ganhou de uma madrinha um broche de ouro trabalhado, precioso, cravejado de diamantes. A madrinha disse: “este você não dá, não vende, não empresta”. Ela ficou anos sem saber o que fazer, pois nem tinha coragem de usá-lo. Até que teve uma idéia brilhante: fez um sorteio do broche.
E assim, neste circuito de dar e receber, muitas pessoas descobrem que dar é melhor que receber. Como na oração de São Francisco de Assis: “Ó mestre, fazei que eu procure mais consolar que ser consolado; compreender que ser compreendido, amar que ser amado. Pois é dando que se recebe”.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Ao Mestre, com carinho

          
             Recentemente, li no Jornal Correio o artigo intitulado “Ao Mestre, com desprezo?”, de Luiz Mário Moura. Abordava a atual propaganda do MEC, que incentiva a profissão de professor. O autor escreveu bem, ressaltando vários problemas dos profissionais da educação, como os salários aviltantes. Termina perguntando: ”como ser professor numa realidade destas?”
Acredito que tudo é uma questão de paixão. Como disse Rubem Alves, “o educador é como uma velha árvore, como um jequitibá, por exemplo. Viceja e floresce num lugar que lhe é próprio. Ninquém o plantou e nem o viu nascer. É mistério e profundidade. Exerce sua função com amor e paixão. Assim como o estudo da gramática não faz poetas, o estudo das ciências da educação não faz educadores. Educadores não podem ser produzidos, educadores nascem. O que se pode fazer é ajudá-los a nascer.”
Assim, para o professor que é educador, a sua profissão é gratificante. É saber que o sonho é possível, é ter esperanças em um mundo melhor, é ser gente formando gente, é tornar o ato de ensinar um ato de alegria. De ensinar a construir pontes ao invés de muros.
Fui professora durante toda a vida, sempre tentando ser uma educadora. Trabalhei desde a educação pré-primária até a universidade. Comecei numa cidadezinha do interior, numa classe com 40 crianças de seis anos. Todas chamando “tia, tia” sem parar, correndo pela sala, derrubando cadeiras, rabiscando o quadro, beliscando o colega. Aquela vontade de sair correndo e nunca mais voltar. Mas tudo era esquecido quando um aluno escrevia o nome pela primeira vez. Ou então, quando davam um beijo lambuzado e presenteavam com um desenho amassado, cheio de monstros e mal colorido, mas feito com carinho. Depois, as aulas de Ciências e de Biologia no Bueno Brandão e Museu. Turmas grandes e muitas vezes difíceis, alunos “tô nem aí”. Centenas de provas e trabalhos prá corrigir, diários prá preencher, noites mal dormidas, aulas a preparar, dinâmicas de grupo que nem sempre funcionavam. Necessidade de entender cada aluno como ser único e a total falta de tempo para isso. Mas valeu a pena e se pudesse, faria tudo novamente.
Depois, as aulas na UFU. Experiências marcantes, como a homenagem que recebi dos alunos em uma Semana Científica, quando cantaram para mim “Maria, Maria”, de Milton Nascimento. Pura emoção. Ou então, quando corrigia os trabalhos dos alunos e me deparava com alunos poetas. Como o André, que cursava Prática de Ensino e assim registrou no seu memorial as primeiras experiências como professor de Ensino Médio: “Percebi que adorava ser amigo da turma. Acho que era aquele cheiro de espinha e de piada boba apimentada com a safadeza ingênua das primeiras paixões. Uma época imortal que acaba passando e a gente só volta prá ela quando vira pai, professor ou redescobre algo verdadeiro perdido nos desamores da vida. Tenho escutado muito os Beatles para ver se redescubro algum amor perdido, mas só me lembrei de minha adolescência quando entrei em sala de aula. Deu vontade de mudar a vida sacudindo o mundo e por isto sou grato a meus alunos.”
Por tudo isto e muito mais, sobrevive a paixão que impulsiona os professores educadores. Aqueles que sabem, como disse Galileu Galilei, que “você não pode ensinar nada a um homem; você só pode ajudá-lo a encontrar a resposta dentro dele mesmo.”

sexta-feira, 14 de janeiro de 2011

O outro lado

O netinho, Vítor, personagem da história, entre o primo e o irmão
         
            Gosto muito deste provérbio: “chorei porque não tinha sapatos, mas consolei-me vendo um homem que não tinha pés e sorria”. Mostra a importância de sermos gratos pelo que somos e temos. E também de sermos otimistas, o que nem sempre é fácil, pois muitas vezes não vemos o lado bom nas situações do dia a dia.
            Por exemplo, tenho um filho adolescente que tem aulas às sete da manhã. Ninguém imagina a novela para acordá-lo. Chamo, sacudo, gemo, imploro, ameaço, beijo a medalha da Nossa Senhora Milagrosa e nada (gostaria de ter um guindaste para levantá-lo). O processo se repete durante os 200 dias letivos, uma luta. Mas recentemente, com a norinha viajando, o neto de seis anos ficou comigo e deveria levá-lo à escola, também às sete horas. Chamei-o com carinho e ele acordou (pensei: este é fácil). Mas acordou enfezado. Não ia com aquela meia de jeito nenhum. Arrumei outra. Não queria ir ao banheiro nem vestir a calça do uniforme. Consegui convencê-lo. Não queria sucrilhos com Toddy, tinha que ser com Nescau. Depois de muita conversa, como não tinha Nescau, resolveu. Mas decidiu ele mesmo esquentar o leite no microondas. Ficou quente demais, derreteu os sucrilhos, e ele, bem bravo, abandonou o lanche. Quando por fim entramos no carro (ele arrastando a pastinha que pesava alguns quilos) viu que tinha esquecido a blusa de frio (eu a tinha entregue em suas mãos). Abriu a porta, arrastou a pastinha de volta, subiu as escadas, sentou na sala e, emburrado, disse que não ia mais. Busquei a blusa e usei mil argumentações para convencê-lo. Chegamos na escola faltando um minuto. Quando pensei que ele ia descer do carro, disse que com aquele cabelo não ia. Argumentei que era o cabelo que ele tinha, não era possível mudar. Mostrou então um tufo de cabelos empinados, sobressaindo no meio do seu lindo cabelo lisinho. Arrumei uma escova, ele escovou, escovou e nada. Busquei água, molhamos o cabelo, ele escovou até ficar tipo boi lambido. Desceu do carro, mas quando subia a rampa, puxando a pastinha, viu que não tinha amarrado o tênis (só ele pode amarrar). Parou, ficou ali longos minutos amarrando, eu olhando de longe e o tempo correndo. Quando finalmente chegou na porta de entrada, o porteiro já a tinha fechado. Começou a sapatear de desespero, lágrimas saíram de seus olhinhos. O porteiro viu, abriu a porta, ele enxugou as lágrimas e aleluia, entrou na escola!
            Não pude deixar de me lembrar da história do bode, que é mais ou menos assim. Em uma casa pequena e sem conforto, morava uma grande família: pai, mãe, irmãos, sogra, avós, cachorro, gatos. Todos amontoados e com mil conflitos. Um dia, o pai, desesperado, foi pedir ajuda ao padre da cidade. Este o aconselhou a colocar um bode grande e fedorento dentro da casa. Sem entender nada, o pai assim o fez. O bode aprontou: chifrava, comia tudo o que via, deitava na sala, defecava nos quartos. O pai, mais desesperado ainda, procurou o padre novamente. Este então disse:”agora tira o bode da sua casa”. Pronto. Felicidade total.
Assim, relacionando filho, neto e bode, conclui que meu filho dá trabalho para levantar, mas depois de cinco minutos está prontinho, sem criar caso. Encontrei o lado bom.

domingo, 9 de janeiro de 2011

Casos de Minas

           
             Adoro livros. Comecei na infância com “Lalau, Lili e o Lobo” e fui progredindo. Recentemente, lí “Casos de Minas”, de Olavo Romano. Bom demais, com casos acontecidos nas pequenas cidades de Minas e na roça. Tem histórias de alma penada, de pirraça de marido velho com a mulher “cobra canina”, de casal apanhado na moita de bambu. De benzeção pra curar cobreiro e vento virado, de dedos de prosa na varanda, de moça fugindo pra casar, de parto encruado.
            Casos como o do Altino, que curtia programas caipiras na rádio. De tanto ouvir propaganda da água sanitária Super Globo, no intervalo das modas de viola, cismou em tomar uma bem gelada (depois passou seis meses a leite e biscoito de polvilho). O caso do Mestre Rufino, que ensinava música para a Maricota, que não conseguia entender o que significava “o sustenido eleva meio tom”. Ela abandonou o curso na síncope, uma lição antes das três quiálteras (foi aprender a cozinhar). A história da Doralice, apaixonada pelo Zico, que escreveu para ele uma cartinha, terminando assim: “atirei um limão verde na porta da sacristia; deu no ouro, deu na prata, deu no moço que eu queria”. O caso do Chico Lourenço, homem de rompante, que levou a vida berrando e criou os dois filhos no grito: o Chiquito, que vivia caçando encrenca e rabo de saia e o Luiz, que vivia a vida sem pressas e sem aventuras. Do médico cansado e dedicado, tratando do povinho sem recurso, que pagava com frango, arroz e ovo (quando o tratamento era caro, pagavam com porco). Do Quinzinho, contando a morte da Bebeca, sua esposa que ”quando acordou, estava morta”. Depois disto, viveu triste e desacorçoado.
             Há no livro cenas bucólicas, como: “um carcará pia atrás da casa, um carrapateiro pousa no barracão, uma vaca berra, o bezerro responde no curral, o sol se esconde atrás da moita de bambu”. E também ditados sábios, como “em festa de nhambu, jacu não entra”; “galo que canta fora do terreiro, é defunto certeiro”; “fica bobo na praça, que o tamanduá te abraça.”
Além disto, trechos divertidos mostrando a fala dos mineiros, que juntam tudo e engolem letras. O “devogado” Washington, conhecido como Osto; o John Kennedy, chamado de Tião Quêmis; a festa do Mártir São Sebastião, abreviada para Mar Sonsabastião.
O dicionário mineirês-português, que circula na internet, aborda a prosa dos mineiros. Por exemplo: “prestenção:é quâno eu tô falano iocê num tá ovíno”; “isturdia:ôtru dia”; “Jisdifora:cidade pertim do Ridijanero”; “sapassado:sábado passado”; “oipocêvê:óia procê vê”. E por aí vai. Fico é com pena do meu genro americano, que anda tentando aprender português. Se o português já é difícil, imaginem misturado com o mineirês. Um dia o meu filho, mineiro da gema, apressando o pessoal que enrolava para sair, falou: “ôu, cês vai ou cês num vai?”. O genro respondeu prontamente: “eu vai”. Prá piorar, a filha argumentou que os dois precisam falar em português com o filhinho deles. O genro disse, com sotaque carregado, que então só podia falar as palavras que aprendeu aqui: nossa! credo! trem e uai. Prá quem não sabe, nossa é o mesmo que “nóoo e vem de Nóoosinhora”; “uai é uai, sô’; e “trem qué dizé quarqué coizz qui um mineirim quizé”. Ex: “já laveius trem”, “nóoo, qui trem bão!!” Só sei que ser mineiro é “bãodimais”.

Enfim, casados

Noiva entrando na igreja

Noivos na festa
         
Em maio passei pelas experiências de “mãe de noivo”. Parece mais fácil do que ser “mãe de noiva”, mas nem tanto. Começou com a lista de convidados, com aquele receio de ficar alguém de fora e esse alguém nunca perdoar. Depois, a escolha dos ternos para o noivo, que nunca tinha tempo (ele é médico), para o pai, que tem a barriga grande, para o filho adolescente, que detesta terno e para os nove pequeninos que seriam os pagens. A seguir, os preparativos para receber os convidados de outras cidades. No final, 24 pessoas dormindo e comendo em casa,  cerca de 30 no hotel e uma confusão generalizada.
No sábado do casamento, almoço em casa para 50 pessoas (strogonoff, batata palha e arroz). Abandonei a balbúrdia e fui para o salão tentar me embelezar. Depois da maquiagem, pensei que eu não era eu (uma amiga, quando me viu na igreja, perguntou se eu tinha feito plástica).
O casamento aconteceu às 19h na Capela N. S. das Dores. Uma hora antes, um pandemônio aqui em casa, até todos se aprontarem. A idade dos participantes variava de 20 dias (a netinha Yara) a quase 70 anos. Os netinhos bravos, se enroscando nos terninhos com colete e gravata (o Yuri, que mora na praia, sentiu-se tão pesado com o paletó que caiu prá frente, de boca no chão). Para complicar mais, o fecho do vestido da norinha estragou. Desespero geral. Tentou-se de tudo e nada. A filha então arrancou do corpo o seu vestido azul turquesa drapeado e emprestou para a norinha. Saímos atrasados, eu com meu vestido cor de uva de uma alça só.  
Na tradicional cerimônia, momentos marcantes. Ao som do violino, entraram os pajens Pedro e Marina, levando a bíblia e o terço. O noivo, Paulo Márcio, e eu entramos sorrindo, ao compasso da música “Tudo o que se quer”. A seguir, a mãe da noiva com o Zé, meu marido, num imponente meio-fraque (prá todo mundo que o elogiava, ele contava: “é tudo alugado”). Entraram os elegantes padrinhos e o último par, meu irmão e esposa, chegaram atrasados porque ela estava tentando costurar o bendito fecho. Em seguida, entrariam os gêmeos idênticos, de três anos, com as daminhas, ao som de “Aquarela”. Mas eles abandonaram as daminhas e entraram de mãos dadas.
No auge da cerimônia, as portas da igreja foram fechadas. Quando abriram, o coral cantou “Hasta mi final” e entrou a noiva, Camila, deslumbrante, com um longo véu e de mãos dadas com a mãe, que estava em lágrimas num majestoso vestido  dourado.
Na benção das alianças, os pajens “empacaram” e não entraram. Somente o Lucas chegou ao altar, com as alianças no cestinho e um sorriso produzido. O celebrante fez um sermão eloquente, ressaltando o amor e a fé. Nas preces da comunidade, vários amigos falaram ao microfone. A noiva jurou amor eterno e o noivo agradeceu a ela por aquele momento. Assinaram o livro ao som da música “Como é grande o meu amor por você”. Tudo muito lindo.
Depois, a festa. Mesa de frios e bombons (que desapareceram como por encanto),jantar, torta holandesa e merengue de morango. Música animada e muita gente dançando. Entrou uma escola de samba, com mulatas rebolando e alguns homens se assanharam (teve marido se desculpando com a esposa usando as rosas vermelhas da decoração). Por último, um grupo de pagode. A noiva subiu ao palco e soltou a voz. O noivo, já bem descontraído, fez várias vezes o mesmo discurso, agradecendo a presença das pessoas “que vieram de tantos lugares e sei lá de onde”. Alegria e descontração geral.
Enfim, estão casados. Que sejam felizes para sempre. 

terça-feira, 4 de janeiro de 2011

Histórias e canções de ninar

              
         Tenho vasta experiência em histórias e cantigas de ninar. Anos e anos tentando fazer crianças dormirem (filhos, netos, sobrinhos). Só quem passou pela experiência sabe como é. Muitas vezes, embalados pelas cantigas, dormimos e a criança fica. Ou contamos a história toda errada, causando indignação na criançada. Mas pior mesmo é quando a criança dorme no colo e não tem como colocá-la na cama. Parece que a cama tem espinhos.
Sempre me lembro de uma história verídica, publicada na revista Seleções, com fotos dos personagens. O pai fazia tanto malabarismo para colocar a criança na cama sem acordá-la, que um dia emaranhou-se todo, caiu, bateu o cotovelo no chão e quebrou o braço. Com um braço só, a missão ficou mais difícil. Caiu outra vez e quebrou o outro braço. Recentemente, também assisti a um vídeo de um pai, que após várias tentativas fracassadas de colocar uma menininha no berço, resolveu entrar no mesmo e ficar lá com ela, que se aninhou em sua barriga e dormiu. Essa tática eu não conhecia.
            Nessa missão às vezes impossível, as histórias infantis e as canções de ninar tem papel relevante. Por exemplo, dia destes, a sobrinha de sete anos pediu-me para contar histórias para ela dormir. Sugeri Branca de Neve, Rapunzel ou a Bela Adormecida. Ela disse que não queria histórias de medo, tinha pavor de bruxas. Pensei então no Patinho Feio. Também não serviu, era muito triste, ela ficava com pena do patinho. Optamos pela Festa no Céu, aquela que o sapo vai no violão do urubu.
Realmente, tem histórias e cantigas estranhas. Em “João e o pé de feijão”, o Joãozinho é mau caráter, rouba a galinha dos ovos de ouro e a harpa do gigante. Prá completar, corta o pé de feijão para o gigante se esborrachar no chão. O Gato de Botas também não é lá muito honesto, engana o gigante e fica com seu castelo.
Existe sobre isto um texto bem humorado de dois meninos conversando. O primeiro conta que estava chateado com a mãe, pois ela estava com uns papos estranhos, disse que a cuca vinha pegar. Ele nem conhecia esta cuca, não tinha feito nada e a cuca vinha pegá-lo? O pior é que entendeu que quando a cuca viesse, ia estar sozinho, pois o pai foi prá roça e a mãe foi passear. Como a mãe foi passear, se estava ali bem na frente, cantando? Será que ele era adotado? Se fosse, era até melhor, pois ficou sabendo umas coisas estranhas da mãe. Ela disse que pegou um pau e atirou no gato. Quanta maldade! O outro menino perguntou porque será que sua mãe tinha feito isto.  Respondeu que ela era pertubada. E pior, parece que a mãe estava traindo o pai dele, pois disse numa boa, cantando, que lá no bosque, no final da rua, tinha um cara que devia ser bonitão, pois ela o chamava de Anjo. O tal Anjo roubou o coração dela. E se fosse a dona da rua, mandava colocar ladrilho em tudo, só para o Anjo passar desfilando. Completou que achava que a mãe também não gostava dele, pois começou a chamar um boi de cara preta prá levá-lo embora, fazendo um monte de caretas. O segundo menino, que escutava boquiaberto, concluiu: “nossa, “véio”, com certeza ela não é sua mãe. Nunca uma mãe ia fazer isto com o filho”.
As histórias e cantigas ficam mesmo na imaginação das crianças. Prova disto foi o menininho que olhava encantado para o lobo guará taxidermizado, no museu da UFU. De repente, saiu de fininho e começou a olhar prá todo canto. Perguntado sobre o que estava fazendo, respondeu: “procurando os três porquinhos”.

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

A velhinha

           
            Vocês não conhecem a velhinha que eu conheço. Pequenina, com cerca de um metro e 30 quilos, naquela fase da vida que a gente vai encolhendo, encolhendo, até sumir. Ela tem mil rugas na face, pescoço e braços. Rugas oblíguas, transversais, côncavas e convexas. Esculpidas em volta da boca, acentuadas e marcadas. São as cicatrizes da vida, que parecem contar histórias. É a vida que vai embora. A boca murchinha, virada para dentro, sem dentes. Olhinhos vivos, pretos e espertos.
            Ela se chama Angelina Maria e mora no Bairro Dom Almir. Sempre vem à minha porta pedir cobertor, blusa de lã e lençol. Sei que não devo, mas dou tudo. Explicam que dar esmolas tira a dignidade das pessoas, mas no caso da velhinha, penso:“E se fosse a minha mãe?” e não resisto. E Jesus disse: “em verdade eu vos digo, que tudo o que fizestes a um destes meus irmãos, mesmo aos mais pequeninos, é a mim que o fazeis”. Sei também que precisamos praticar a caridade e a compaixão. E que existem cerca de 14 milhões de brasileiros castigados pela miséria e pela fome.
            Acontece que um dia desses, ví a velhinha com uma trouxa enorme de coisas que ganhou. Um pensamento malicioso passou por minha cabeça: ” A velhinha está vendendo as coisas que ganha, não deve nem precisar de ajuda”. Depois, ela voltou e pediu outro cobertor. Criei coragem e disse que já tinha dado um para ela e que um cobertor dura uns 20 anos, que o meu já tinha 15 anos. Ela gemeu alguma coisa e foi embora.
            Passado alguns dias, volta a velhinha. O meu neto vai correndo atender à campainha, topa com a velhinha enrugada, dá um grito de terror e volta assustado. A velhinha quase morre do coração, desiste de pedir algo e vai embora, rápida e ligeira.
Mas nesta semana ela voltou. Chegou de vestido de chita estampado e lenço de seda cobrindo os cabelos brancos. Fui conversar com ela, olhar nos seus olhinhos miúdos. Pediu um lençol e uma fronha. Perguntei para quê e ela explicou, aos arranquinhos, balançando o pescoço enrugado, que o neto de 20 anos, Emerson, “mexe com estas porcarias que agora todo mundo mexe”, já foi preso pela polícia e está internado. Ela precisa levar a roupa de cama e participar das reuniões, pois a mãe é doente , manca de uma perna e tem desmaios. Disse que é analfabeta, teve oito filhos, três e o marido já morreram. Toma a limonada que levei e fala que sofre muito, muito. As pernas doem de tanto andar. Vem do Dom Almir de ônibus, de graça, pedir coisas no centro porque lá ninguém ajuda, todo mundo precisa. Pergunto quantos anos ela tem. Responde com olhar maroto, dando uma risada banguela, que tem quase cem. Depois de um longo papo, dou o lençol e a fronha e resisto ao ímpeto de chamá-la para morar comigo. Me ofereço para procurar algum abrigo para ela morar, mas ela diz que não pode, precisa cuidar da família. Vai embora com o vestido de chita balançando ao vento.
Penso na multidão de idosos desamparados, que não têm uma velhice digna. O envelhecimento em sí é um evento natural, onde as rugas na face poderiam contar histórias bonitas e os cabelos brancos deveriam ser homenageados e respeitados. Mas as rugas da Angelina Maria não contam histórias bonitas. São dores caladas que pedem esperança e dignidade. Logo ela vai voltar e ainda não sei o que vou fazer.