A cada dois dias tentarei colocar um texto novo, para manter o interesse dos meus leitores e também algumas fotos para exemplificar alguns textos. Obrigada pelo apoio.

sexta-feira, 17 de novembro de 2023

Paixões sertanejas


                                       

            Não entendo muito de música (gostaria) e o sertanejo não é meu gênero musical predileto.  Mas  não há como negar que as letras das músicas sertanejas são demais:  criativas,  singelas, originais, nostálgicas. Algumas muito divertidas, outras de muita sabedoria, outras cantando as belezas da natureza, outras tratando dos relacionamentos amorosos. Essas últimas são as mais interessantes, tem paixão pra todo gosto.

            Por exemplo, há um grupo de músicas sertanejas em que o apaixonado está bem com sua amada e ela é tudo pra ele.  Como Zezé de Camargo e Luciano cantando "eu não vou negar que sou louco por você, meu doce mel, meu pedacinho do céu, minha doce amada, minha alegria". E esse amor pode ser bastante  fogoso, como cantam Christian e Ralf: "esse amor molhado faz tudo acontecer, você me deixa atiçado, pra te mais prazer, eu cubro com espumas o teu corpo nú". Ou Gian e Giovani: "se a gente se ama, porque não se enrosca, s'imbora, vamos lá pra cama, estamos no clima". Ou Bruno e Marrone, em  "24 h de amor": "e de repente vi você sair com a toalha no seu corpo e se agarrar a mim como nos velhos tempos de um amor tão louco" . Também Chitãozinho e Xororó exaltam esse amor ardente: " minha amada amante, você me enlaça, me enrosca, me amassa, me atiça, me inflama, me abraça e me ama". E tem alguns que ficam juntos, mas sempre brigando: "entre tapas e beijos, morro de amor por ela, eu sou dela e ela é minha, é ódio e desejo, eu saio pra fora, ela me chama pra trás", como cantado por Leonardo. Ah, e tem músicas que o amado faz de tudo pra ficar com a amada. Felipe e Falcão cantam assim: "deixa eu te amar por favor, você pode impor o seu jeito de amar que eu aceito". E Teodoro e Sampaio: "quero alugar uma casa pra poder morar com ela, dizem que ela não presta, não me interessa, eu só gosto dela."

            Em outro grupo, classifiquei as músicas nas quais os dois amantes não estão mais juntos. Alguns ainda têm esperança,  como o Roupa Nova cantando: " volta pra mim, eu te amo e vou gritar pra todo mundo ouvir, sou menino e seu amor é que me faz crescer, esta paixão é meu mundo ". Zezé de Camargo e Luciano também : "aonde você foi parar, aonde a vida te levou, quando você vai voltar, pra ser de novo o meu amor?"  Mas há aqueles que sofrem muito e se apegam a pequenas coisas da amada, que já era, coitados.  Como Chitãozinho e Xororó : "um fio de cabelo no meu paletó, aquele fio de cabelo comprido já esteve grudado no nosso suor'".  E  Teodoro e Sampaio : "meu bem, eu queria que você voltasse, ao menos para buscar uns objetos que você não levou, um batom usado, um vestido velho, o vestido de seda que não tem mais valor". Tentam esquecer a amada, mas não conseguem . João Mineiro e Marciano cantam assim: " se eu não puder te esquecer, mando avisar que o velho amor acordou, esquecer é difícil demais, ninguém é capaz, se amou um pouquinho". Alguns reagem e entram em fúria : "esqueça o meu telefone e não ligue mais porque estou cansado de ser remédio para curar o seu tédio; decidi o meu telefone  cortar, telefone mudo não pode falar" , como na música do Trio Parada Dura . Outros partem para o xingamento: " você abusou demais, já não temos condições de continuar, vá pro inferno com seu amor, você não me amou", do Chitãozinho e Xororó. E tem aquele que chega ao extremo: mata a amada , vai pra prisão  e fica  conversando com o ipê florido que vê atrás das grades: "ela me abraçava, depois me traía, por isso a matei; agora minhas noites não têm aurora" , como cantado  por Liu e Léo.

            Nesse mesmo grupo da separação , tem amante abandonado que parte pra bebedeira. Como Teodoro e Sampaio: " antes de perder você eu não chorava e não sofria, agora bebo e sou fumante, se não conseguir esquecer, amanhã bebo de novo." E Jorge e Mateus : "oh, vida amargurada, oh, que saudades dela, não aguento mais, vou lá na vendinha, vou tomar um pingão". Na música "Boate Azul", o amado entristecido vai procurar outro amor para esquecer o que perdeu, mas se embriaga: "eu bebi demais e não consigo lembrar sequer qual o nome daquela mulher"  Já outros ficam sonhando em banco de praça, como na música de Bruno e Marrone:  "seu guarda, eu não sou vagabundo, eu não sou delinquente, sou um cara carente, eu dormi na praça pensando nela." Ou sonham em casa mesmo: "minhas lágrimas molharam a fronha do meu travesseiro, amor como é triste acordar e não te ver", de Milionário e José Rico. E tem aqueles que deixam claro que nunca, nunca mesmo, vão esquecer a amada: "você me pede na carta que eu desapareça, posso fazer sua vontade, mas esquecer é tempo perdido, ainda ontem chorei de saudades", de João Mineiro e Marciano .

E o ciúme, meu Deus? Tem muitos ciumentos sofredores. Como na música de Almir Rogério: "meu Deus do céu, diga que isso é mentira, se for verdade esclareça por favor, daí a pouco eu mesmo vi o fuscão, e os dois juntos se desmanchando de amor". E o Trio Parada Dura : "esta é a última vez que lhe vejo, não vou nem lhe pedir um beijo, não precisa virar o rosto , sei que no seu coração tem outro" .

            No último grupo, tem as músicas divertidas. Por exemplo, quando o amado "tá nem aí" para o que as pessoas pensam: "tô de namoro com uma moça solteirona, os parentes criticando, não me interessa se ela é coroa, panela velha é que faz comida boa", do Sérgio Reis. Também tem aqueles que contam vantagem , como Gino e Geno: "mulher bonita e gostosa, nóis ganha é de montão, de bobo nóis não tem nada, só a cara de coitado, nóis é bravo e bom de cama, nóis se finge de leitão, pra poder mamar deitado."

            Bem, depois dessa, vou parando por aqui. Mas que os amores e desamores retratados nas músicas sertanejas dariam um livro bem grosso, lá isso daria.

 


quinta-feira, 9 de novembro de 2023

Ao rufar dos tambores




                               

            No domingo, oito de outubro, Uberlândia  encheu-se de cores, de música , de dança e de rufar de tambores. De todos os cantos da cidade chegaram , na Praça Rui Barbosa, os ternos do Congado, uma festa de origem africana. Um ritual do povo negro em homenagem à Nossa Senhora do Rosário e aos santos negros, São Benedito e Santa Efigênia.

            Das janelas do meu apartamento, eu assisti tudo. A Banda Municipal iniciou as comemorações e os ternos desceram pela Avenida Floriano Peixoto. Quando chegavam na praça em frente à igreja do Rosário, acontecia o apogeu das danças, dos cantos e do rufar dos tambores, na apresentação para a imagem de Nossa Senhora do Rosário, cercada de flores.

             Foi tudo bem organizado e de acordo com a tradição  das raízes do Congado.   Cada terno tem os seus componentes, a sua vestimenta, o seu canto, o rei , a rainha, as princesas, o capitão. E anjinhos também. O terno vai devagar, cadenciado, tocando e dançando em louvor à santa. O tipo de movimento e de dança é sempre o mesmo: saltitante, marcada pela ginga e pelo cruzamento de pernas e de pés. A direção é  horizontal, com deslocamentos laterais, dois passos pra lá, dois pra cá, certinhos. O capitão, que é o líder,  vai na frente, cantando os versos e os demais respondem em coro. Os cantos são destinados a tirar o grupo da ação das forças ruins e a invocar a proteção de Nossa Senhora. Falam dos sofrimentos da escravidão, dos lamentos de um povo arrancado de sua terra. Ao mesmo tempo que  invocam os santos e as forças do alto, também são cantos de redenção , de esperança de uma vida melhor. São espontâneos, curtos e singelos, como alguns exemplos de cantos do Congado que encontrei na internet: "trabalha nêgo, trabalha direito, a Senhora do Rosário merece o nosso respeito";  "ora viva, cai sereno, na aba do meu chapéu, a bandeira hoje ela sobe, pra ficar perto do céu; " ô viva nosso rosário, ô viva São Benedito, eu danço este reinado, danço porque acredito". Também há cantos de gratidão à Princesa Isabel, pela libertação dos escravos: " no tempo do cativeiro, preto não tinha valor, salve a Princesa Isabel, que o preto libertou". "no dia 13 de maio, eu amarrado na corrente, veio Princesa Isabel, nêgo véio libertou, foi Nossa Senhora, que esse nego véio salvou."

            Assim, cantando , dançando, tocando tambores, tamborins , cuícas, pandeiros e  as latinhas amarradas nas pernas dos homens, devagar os ternos iam passando. Os tambores soando alto na rua, invocando de um modo africano e selvagem, os santos católicos e a coroação dos reis congos. Os ternos do Congado são divididos em  grupos distintos, como os guardas de Congo, que se vestem de verde e de rosa, significando o caminho para a Senhora passar, com galhos verdes e flores. E os do grupo de Moçambique, que se vestem com as cores de Nossa Senhora, azul e branco. Passam cada um com sua bandeira colorida, enfeitada de fitas e bordados. Com o nome do terno de um lado e do outro, de N.S. do Rosário, São Benedito ou Santa Efigênia, lembrando a proteção que estes santos deram aos escravos negros. Carregadas por moças bonitas que rodavam a bandeira sem parar e sem cansar. Bandeiras com fitas grandes seguradas nas pontas por mulheres com vestidos rodados e confortáveis, e com sandálias brancas novas, dançando sem parar. Com tranças verdadeiras e tranças falsas. Muitas crianças pequenas, vestidas com esmero, com as cores do terno. Algumas carregavam e tocavam tambor, outras dançavam com habilidade e faziam acrobacias.  Os homens, com chapéus e capas enfeitados de contas, miçangas, franjas e bordados, um luxo só. Alguns de branco impecável, outros com cores vivas e brilhantes. Cores e mais cores (e também suor e mais suor, pois estava um calor escaldante, mais de 30 graus). Levavam cajado, bastão ou espada, que são elementos materiais, investidos de magia,  que funcionam como fetiche, centralizando o poder e a força sobrenatural. Colocavam o cajado com a ponta no chão e dançavam em volta, em círculo e curvados.  Mulheres com vestidos enfeitados com rendas, crochê, bordados.  Com passinhos pra lá e pra cá, na cadência da música, tudo bem ensaiado. Cabelos enfeitados ou com panos enrolados. Algumas com criança de colo, outras amamentando o bebê vestido com a roupa igual a da mãe.  Tinha cadeirante e muitos idosos ágeis, que cantavam com entusiasmo  e faziam acrobacias com o tambor. Ah, os tambores! Grandes, médios, pequenos, tocados com vigor e no mesmo ritmo o dia todo: tá-tá-tum, tá-tá-tum (á noite, mesmo depois que todos se foram, os tambores continuaram retumbando na minha cabeça).  Algumas pessoas ajoelhavam com o tambor e choravam na frente da Santa, que decerto consolava cada um deles. Ela, Nossa Senhora do Rosário, deve ter ficado feliz com tanta demonstração de fé, alegria e empolgação. Ouvi bem um terno cantando com estardalhaço: "Adeus Nossa Senhora, estou indo embora", muitas e muitas vezes. E depois se foi, dobrando a esquina. Os reis e rainhas dos ternos eram mesmo majestosos, com capas pesadas de veludo enfeitadas de dourado e coroas enormes e pesadas, lembrando a opulência dos reis africanos.  Novos reis e rainhas são coroados a cada ano, no final da festa. Existe também o rei e a rainha vitalícios. Segundo o porteiro do meu prédio, que é capitão do terno Amarelo Ouro, situado no Bairro Santa Mônica, os reis vitalícios são o casal D. Darci e o Sr. Zé do cinema. Vi os dois sentados durante a festa ao lado da imagem da Santa, majestosos em suas vestimentas. Curiosa, perguntei ao capitão do terno Amarelo Ouro qual era o canto deles: "dormi a noite no sereno da madrugada, sou amarelo ouro com amor, felicidade é de ouro , é de prata, a Mamãe do Rosário também é de ouro"; "rei, cadê a rainha, rainha, cadê o rei, nós viemos visitar, a rainha do nosso rei"; "na gaiola tem um canarinho, na gaiola tem um sabiá, só eu, só eu, só eu que não sei cantar". Achei lindo...

            Além do desfile dos ternos, teve hasteamento de bandeiras, procissão com as imagens de Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito; missa com o Padre Fábio; coroação dos reis e rainhas para o próximo ano. E no entorno da praça via-se de tudo: barraquinhas de cachorro quente, churrasquinhos e bebidas, muita bebida; pessoas embriagadas fazendo algazarras ou caídas no chão; anjinhos sentados, cansados e segurando as asinhas; princesas com coroas e vestidos brancos descalças e carregando as sandálias; homens com carrinhos catando latinhas; público cantando e dançando junto com os ternos; crianças brincando com os tambores; grupos fazendo pose para fotos. E lixo, muito lixo, de dar tristeza. Enfim, tudo entrelaçado: a festa, a fé, a alegria das cores, a bebida, a tradição do ritual africano, o rufar dos tambores, a despedida para o próximo ano.

            Que Nossa Senhora do Rosário e São Benedito abençoem a todos.  Até o próximo ano, se Deus quiser.