A cada dois dias tentarei colocar um texto novo, para manter o interesse dos meus leitores e também algumas fotos para exemplificar alguns textos. Obrigada pelo apoio.

sábado, 20 de fevereiro de 2021

A venda da fazenda Parte 3: as dificuldades

O canhãozinho enferrujado

A lagoa no meio da fazenda

Enzo procurando o boi

Lia, Pedro e Enzo no curral

          Apareceu logo um comprador interessado na fazenda Olhos Dagua. Depois de muita conversa, cada um puxando para o seu lado, tipo cabo de guerra, conseguimos fechar o contrato de compra e venda. Fiquei indignada com o fato de que na venda de fazenda é praxe entrar algo de graça. Como assim, por que isso?  Queriam o trator novo. Entrou um caminhão velho, mas bom demais. Além dos acordos, da parte técnica e das lembranças, surgiram outros problemas. Por exemplo, o que fazer com a vaca da Lia e o boi do Enzo? E com o Cookie, o perdigueiro que ninguém queria? E com os cavalos dos doze netos? E com todo o maquinário (equipamentos) da fazenda, que eu não sabia nem o nome e nem pra que servia? E isso sem falar na trabalheira e desgaste para avaliar e vender todo o gado.

                Começando pela vaca, a Daisy (Margarida, em português). A Lia, minha netinha americana de 10 anos, economizou a sua mesada e vendeu bolo e limonada  para conseguir  comprar uma novilha do Zé (dar, ele não dava, todo neto iria querer). A Dayse foi marcada com o nome "Lia" e foi crescendo forte e saudável. Quando a Lia soube que a fazenda seria vendida, entrou em desespero. Consolei-a dizendo que  levaria a Daisy para outra fazendinha.  Em janeiro agora, a Lia estava na fazenda comigo e planejamos o transporte da Daisy, dos cavalos Pocotó e Picolé e de duas vacas bonitonas pra fazerem companhia pra Daisy. E do boizão também, aquele que não entrava no caminhão, queríamos salvá-lo. Mas, se ele não entrava, como iria? No final, deu tudo errado, pois não morava ninguém na fazendinha e ficamos preocupadas de todos morrerem ou serem roubados. Assim, pedi ao senhor que comprou a fazenda para deixar a Daisy lá mesmo e ele concordou, dizendo que cuidaria bem dela. Agora a Lia está feliz, esperando os bezerros nascerem.

                Quanto ao boi do Enzo, o irmão de 12 anos da Lia, aconteceu uma tragédia. O Enzo cortou grama dos vizinhos, lá na Califórnia, varreu folha das calçadas, economizou e comprou um garrote do Zé. Também foi marcado com o nome  "Enzo" em letras grandes, então era inconfundível.  Em setembro, quando passou no brete e na balança, já pesava 349 kg. Em novembro, estava separado dos outros, em recuperação de um pé machucado. O Enzo logo disse que  queria era o dinheiro do boi (nem nome ele tinha). Em janeiro, o Enzo também estava na fazenda na época da venda. Acompanhou todos os lotes de gado sendo pesados, para ver quanto receberia pelo boi. Em dois dias, passaram todos pela balança: boi gordo, boi magro, vaca leiteira, vaca boiadeira, vaca solteira, garrotes, novilhas, etc. Mas o boi do Enzo não passou. Consternação geral. Onde estaria? Saíram todos os funcionários procurando.  Foi encontrado morto, mortinho, perto de uma cerca. Comentei com a Lia que fiquei  triste pelo Enzo. Ela respondeu que ficou triste pelo boi.

                Quanto aos cavalos, foi uma negociação extenuante. O comprador não tinha interesse por eles porque já tinha muitos. Disse também que cavalo valia muito pouco. Pra mim, valiam ouro. Eram úteis, usados na fazenda e cada um era de um neto. O Botafogo, o Alazão, o João de Barro...Senti vontade de libertá-los todos na fazendinha que restou. Mas não teria ninguém para cuidar e acabei vendendo baratinho, uma dó. Distribuí o dinheiro para os netos  e eles se sentiram consolados. Quanto ao Cookie, foi  levado para uma fazenda de eucaliptos, não sei se já se adaptou e se anda devorando todas as galinhas de lá.

                E os maquinários, meu Deus! Tive que fazer uma lista enorme com o nome e o valor de cada um, para negociar com o comprador. O encarregado da fazenda mostrou tudo e o filho médico ajudou a colocar os preços. Tenho um irmão que sempre diz que qualquer pessoa é extremamente inteligente para certas coisas e extremamente burra para outras. No que sou inteligente eu não sei, mas para maquinários de fazenda sou um desastre. Não sabia que existia plantadeira de capim, calcareador, grade de arrasto, subsolador, trado de três hastes, ensiladeira, roçadeira de arrasto, roçadeira de tomada de força, niveladora. Isso só para dar alguns exemplos. Tinha alguns bem velhos, sucatas, que só serviriam para retirar peças e não entraram na lista. Como o canhãozinho ou foguetinho (esqueci para que serve, mas não é para atirar). Enorme, enferrujado e abandonado debaixo de uma árvore. A negociação  foi complicada e sei que levei prejuízo, fazer o que. Deu vontade de "chutar o balde", como  dizem...

                E ainda tinha o gado, o mais importante. Combinar o preço da arroba do boi gordo, do magro, das vacas, dos bezerros. Pesar, somar as arrobas, multiplicar pelo preço, ver como vender vaca com bezerro, o que fazer com os bois de pés machucados. Vendemos a arroba pelo preço do dia e dali a poucos dias estava muito mais caro...Sorte do comprador.

                Enfim, lá se foi a Fazenda Olhos D'Água. Ficou aquela sensação de não ter se despedido direito de uma coisa que você não tem mais e que queria ter.  Mas quando uma porta se fecha, outras se abrem. Se Deus me ajudar, vou transformar a fazendinha que restou, a Ouro Verde, em um paraíso ecológico banhado pelo rio Jequitaí. Lá não tem nada, só uma cisterna desbarrancada e uma casa que caiu. Precisa levar energia e água, construir uma casinha branca de janelas azuis, limpar o pasto. Quando tudo estiver pronto, levo a Daisy e umas outras vaquinhas pra fazer companhia pra ela. E um boi de raça, gabiru não.

                Depois conto como foi.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

A venda da fazenda Parte 2: as lembranças





 

                Com a decisão tomada de vender a fazenda Olhos Dágua, seguiram-se os trâmites normais: avaliação, contato com corretores, divulgação, documentos,  impostos , etc.  A essa altura, o Zé já tinha falecido e na partilha, a fazenda tinha ficado para mim, pois nenhum dos seis filhos teria condições de cuidar (e nem eu). Essa parte técnica foi trabalhosa, mas não tão difícil quanto a parte sentimental.

                Ficou aquele sentimento de nostalgia pelos bons momentos que toda a família passou durante os dez anos que sempre íamos na fazenda, e que não voltariam mais . As lembranças do Zé: sentadinho na varanda, olhando feliz a chuva que vinha chegando ao longe.  No meio da pastagem, que parecia um jardim, olhando orgulhoso os bois gordos e sadios, sem nenhum carrapato. No curral, batendo um papo sem pressa, com os funcionários. Ou bebendo  leite quente e espumante com conhaque, tirado na hora das tetas da vaca. Na oficina, orientando sobre o conserto dos tratores, que estragavam sem parar.  Na mesa grande da varanda, cercado pelos filhos e netos, saboreando a galinha caipira que tanto gostava. Ou então o miolo de porco em cima do arroz quentinho. Uma vez ele também comeu omelete de aleluia. Deu uma invasão desses insetos na fazenda, eram atraídos pela chama do fogão e entravam na comida como ingrediente. As lembranças dos filhos: o dia em que o Luiz Cláudio decolou da fazenda em seu paramotor e sobrevoou a Cachoeira do Manteiga. Os habitantes olhavam curiosos quando o vento mudou de direção e ele fez um pouso forçado. Ficou na história da cidadezinha. As competições de tiro ao alvo e as caçadas com espingarda de chumbinho. As pescarias com uma parafernália de fazer inveja a qualquer pescador, mas eles não pescavam nada. As lembranças dos netos e netas: os passeios a cavalo, os piqueniques debaixo das gameleiras gigantes; os netos empoleirados no curral olhando o gado, nadando na prainha do rio Paracatu, brincando na casinha de boneca e na piscina de plástico debaixo do pé de jaboticaba.  A Maíra, a netinha de 9 anos que queria um porquinho de estimação. Mas ele fugiu do tambor, onde ela lhe passava a mão  para domesticá-lo, e saiu numa carreira desenfreada pelo pasto afora. Foram muitas lágrimas de desespero, sem saber se ele saberia voltar para o chiqueiro. No dia seguinte, fomos as duas contar os porquinhos. Tinha doze como antes, ele estava lá sim, com os irmãozinhos, todos iguais! A Vitória,  filha do encarregado, amiga inseparável das netas. O Moisés, que caia em prantos quando ia embora, queria morar na fazenda...O Pedro, que um dia caiu do cavalo, ficou muito assustado e passou um bom tempo sem montar novamente. A Lia, que lá nos States fez um curso sobre como cuidar de cavalos. Fez trança em cascata na crina do Algodão e ele ficou todo garboso. As lembranças do Cookie, o cachorro perdigueiro de estimação que estraçalhou todas as galinhas dángola da fazenda. Da Dama, a cachorra da cidade que sempre ia com o meu filho, dentro da sua gaiolinha. Certa vez ela desapareceu e passamos  parte da noite no pasto gritando por ela. Apareceu no outro dia, esfomeada. E muitas outras lembranças: o céu tão estrelado, o pôr do sol tão lindo, as flamboyans floridas, o queijo fresco e o leite gordo, os pés de mangas suculentas, os pirilampos que certa vez apareceram na casa à noite, ficando centenas de luzinhas acesas por todo canto (mas também aparecia escorpião, minha filha foi ferroada).  A ternura e o cuidado das vacas cuidando dos bezerrinhos novos e o encanto de cada nascimento.  A boiada vigorosa trotando na frente da casa e levantando poeira. A majestade e a placidez do rio São Francisco, o velho Chico. As aventuras a cada travessia na balsa...

                 Pensando em tudo isso, lembrei-me daquela história de um amigo do poeta Olavo Bilac. Ele queria vender um sítio que lhe dava muito trabalho e despesas.  Pediu então ao poeta para redigir o anúncio da venda. Bilac escreveu: "vende-se encantadora propriedade onde cantam os pássaros ao amanhecer. É cortada por cristalinas e refrescantes águas de um ribeirão. A casa, banhada pelo sol nascente, oferece a sombra tranquila das tardes na varanda". Meses depois, o poeta encontrou-se com o amigo e perguntou-lhe se ele tinha vendido o sítio. O amigo respondeu que nem tinha pensado mais nisso, depois que viu a maravilha que ele tinha.

                Deu vontade de desistir da venda da fazenda também. Mas sem o Zé, não teria mais sentido continuar. Melhor pensar como naquela poesia: "que esta minha vontade de ir embora se transforme na calma e na paz que eu mereço...porque metade de mim é partida, mas a outra metade é saudade."

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                

A venda da fazenda Parte 1: a aprendizagem



                Com o falecimento do Zé, meu marido,  resolvi vender a fazenda Olhos Dágua, no municipio de Buritizeiro e nas margens do rio São Francisco. A venda não daria apenas uma crônica, mas um livro inteiro, e grosso.

                Tudo começou no ano passado, quando, com o Zé doente, tive que assumir e aprender muita coisa. Algumas espantosas. Por exemplo, na hora de telefonar para os frigoríficos para vender os bois magníficos, que não sabiam o destino que os esperava, o Zé me orientava  para perguntar se eles contavam os dentes.  Porque se o boi tivesse mais de quatro dentes, pagavam menos!  Daí eu argumentava que era lógico que todo boi tem mais de quatro dentes. Ele ficava indignado com minha ignorância, eu perguntava ao frigorífico, vendia para aquele que não contava e até hoje não entendi. Na hora de conferir o tal romaneio de abate, aprendi  que uma arroba equivale a 15 quilos e que pagam só a metade do peso do boi, a outra metade é carcaça: chifre, rabo, couro, pés. Não valem nada (mas para o boi são essenciais). Também  aprendi, na labuta diária, que existe boi gabirú e vaca boiadeira. Eu ficava no curral de 7h da manhã às 18h, anotando o peso das várias categorias, enquanto a boiada passava pelo brete e pela balança, para fazer a apartação do rebanho ou para vacinar. Havia a turma dos bois acima de 500 kg prontos para o abate; bois entre 350 e 500 kg para engordar mais um pouco; machos entre um e dois anos; bezerros de apartação;  vacas de leite e  vacas boiadeiras com seus bezerros; vacas solteiras; novilhas e novilhotas. Passavam  muitos bois bonitos, de carcaça  comprida, brancos, com orelhas curtas. Eram os nelorados, os mais nobres. Entre eles, os gabirús, de carcaça menor, de testa, orelhas e chifres grandes, pêlo mais arrepiado e geralmente de cor. Engordam pouco e são vendidos a preço de vaca. Ou seja, são a ralé do gado e desprezados pelos criadores. Mas são bons de pular a cerca e cruzar com as vacas. Daí vão nascendo bezerros gabirús e isso atrapalha o rebanho todo. Assim, na hora da pesagem e apartação, eles já eram separados para serem castrados, coitados. Entre os bois nelorados, fiquei fã de um. Gordo, com 600 kg, bonitão, de couro lisinho e esperto. Os empregados da fazenda contaram que ele, por duas vezes, estava na turma dos bois a serem levados pro frigorífico. Mas não havia santo que fizesse o boi subir no caminhão. Empurravam, puxavam com cordas, espetavam com varas e nada. Ele não ia. Claro, sabia que ia morrer. Aí, tinham que colocar outro boi no lugar e ele continuava por ali, pastando e engordando.

                 Quanto às vacas boiadeiras,  são as ruins de leite, mas isso passa a ser uma vantagem para elas. São usadas apenas pra ter bezerro e vivem livres, leves e soltas no pasto, com o bezerro mamando todo o leite. Já as vacas leiteiras, embora tenham que dividir o seu leite entre o homem e o bezerro, são mais personalizadas, todas têm nome: conheci a Neguinha, a Esperança, a Seda Branca, a Caretinha, a Fantasia, a Cocada e muitas outras. A Chumbada, por exemplo, tinha 15 anos e já tinha dado à luz (ou parido?)oito bezerros. Era boa de cria.       

                Outra coisa que aprendi, quando eu e meu filho tivemos que andar pela fazenda, com o encarregado, para fazer o planejamento para revitalizar a pastagem: tem muito tipo de capim, uma loucura. Andropogon, braquiária, massai, mombaça, colonião, grama tipi, capim umidícola. Cada qual com suas características e suas necessidades. O pasto necessita ser dividido em piquetes, não pode ter dois tipos de capim juntos porque o gado come o que gosta e pisoteia o outro. Tem muitas pragas também, como a tiririca, que o gado come quando falta capim. E existe capim pra época de sêca e capim pra época das águas. É preciso sempre jogar defensivo agrícola para matar as pragas e há específico para folhas largas. Todo ano é preciso adubar o pasto : jogar calcário, depois gesso agrícola, depois gradear, semear, passar a niveladora e rezar pra chover! Depois que nasce o capim, joga-se outros nutrientes, como fosfato, KCL, nitrogênio, ureia. Também não pode rezar muito para chover, porque pode dar enchente no São Francisco , a água invade o pasto e compromete todo o banco de sementes, como já aconteceu antes. Cruzes, difícil demais alimentar bois e vacas! Sem falar no tanto de sal e milho que é preciso comprar. Na verdade, eu nem precisaria aprender tudo isso, mas como eu é que teria que comprar as sementes e pagar todo e qualquer gasto, não poderia ir tocando a fazenda assim  às cegas. Sempre ouvi o Zé dizer que " o olho do dono é que engorda o boi" .

                O problema maior é que eu não queria engordar boi algum. Se fosse para criar bezerrinhos, e vender bezerros, até que tudo bem. Mas mandar caminhões cheios de bois nobres para o matadouro, era de cortar o coração. Pior, tenho uma filha zen que é vegetariana, faz meditação e yoga. Quando o caminhão ia sair com os bois, ela conversava com eles, rezava e pedia perdão.  Ainda me falava que o sangue dos bois sacrificados voltaria para mim, ou seja, algum dia eu seria culpada por tanto sangue derramado.

                Com tantas coisas complexas, junto com o sentimento de culpa, resolvi seguir o conselho do filho e pedi a orientação de uma equipe de especialistas em manejo de fazendas. Vieram de Belo Horizonte e falaram o dia todo. Olharam a fazenda, viram o gado, os maquinários, conversaram com os funcionários, analisaram todos os dados que eu tinha anotado, sobre a contabilidade da fazenda e sobre o rebanho. Ficaram impressionados com a organização e fiquei orgulhosa. Concluíram  que havia muitas categorias de gado e que seria preciso definir um modelo, pois, como estava, o manejo era complicado (ah, isso eu já sabia!). Talvez o melhor fosse comprar bezerros de 6 arrobas e vender com 13 arrobas para confinamento. Ou seja, os garrotes ficariam presos, engordando, até serem encaminhados para a morte. Nunca que eu faria isso. Outra solução seria criar vacas e vender bezerros. Gostei. Mas quando soube das dificuldades com estação de monta, vacas que nunca dão cria, toque para saber se a vaca está grávida, parto, desmame com bezerros berrando, etc e tal, desisti. Sobrou vender o gado todo e arrendar a fazenda. Mas o Zé sempre dizia que arrendar acabaria com a fazenda. Para agricultura, até que seria possível, mas as terras não eram apropriadas para colocar pivô. Sendo assim, conversamos em família e optamos pela venda.

                Só que eu não sabia que vender era mais difícil que tocar a fazenda. Continuarei a epopeia nos próximos capítulos.