A cada dois dias tentarei colocar um texto novo, para manter o interesse dos meus leitores e também algumas fotos para exemplificar alguns textos. Obrigada pelo apoio.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

Trapalhadas do Papai Noel

Papai Noel com os netos : Maíra no colo, Miguel olhando para o pai, Pedro, Vítor e Théo

      No natal da nossa família sempre tem alguém que se veste de Papai Noel para alegrar a criançada. A roupa é a tradicional, de cetim vermelho e enfeites brancos, casaco com capuz, barba falsa costurada no pano, cabeleira postiça, óculos pretos para disfarçar os olhos, luvas para encobrir as mãos, saco vermelho de cetim para encher de presentes. Acontece que, no penúltimo Natal, toda a indumentária do Papai Noel (que eu mesma confeccionei) tinha desaparecido. Tudo indica que o saco vermelho, com a roupa dentro, caiu da camionete durante a viagem de volta para Uberlândia (imaginem a surpresa de quem encontrou). Assim, no dia do Natal, na pacata cidade de Carmo do Rio Claro, com toda a família reunida, o bom velhinho não pode aparecer para a meninada (Papai Noel sem roupa, pelado, não dá). Foi a sorte dele.
            Na noite de Natal, a criançada comentava o que pediu para o Papai Noel. O neto de cinco anos pediu um laptop do Batman e o de quatro anos, uma pistola do Power Ranger. O pai (meu filho) achou o máximo o pedido da pistola, coisa de macho. Depois, como médico, lembrou-se de que armas, mesmo de plástico, estão em desuso, pois mexem com o hipotálamo e o sistema límbico da criança, desajustam a membrana coriônica do sistema alfa e estimulam a violência. Concluindo: o filho iria virar bandido. Como ele pagou os presentes, já não sabia se era um bom ou um péssimo pai.
            As horas corriam e os adultos, consternados, não sabiam como resolver a ausência do velhinho. De repente, alguém teve uma brilhante idéia e gritou com entusiasmo que o Papai Noel já tinha chegado, escondidinho, e deixado os presentes na árvore de Natal. Completou que ele tinha vindo no trenó puxado pelas renas, que tinha até uma com narizinho vermelho que brilhava, mas ele não pode esperar porque tinha muitos presentes para entregar.
            As crianças, enganadas direitinho, saem em disparada (umas vão devagar, pois tem medo do Papai Noel). O neto mais novo , eufórico, abre o presente com o seu nome e solta um grito de terror: -“O que, uma Barbie? Eu mato este Papai Noel!” E o mais velho, decepcionado e choroso: -“Olha o que eu ganhei, um tapete cor de rosa da Barbie!” O pai olhava tudo, boquiaberto e indignado, pensando: “não dar a pistola, tudo bem, mas uma Barbie! Aí o Papai Noel exagerou!”. Os pimpolhos correm pela casa, tentando encontrar e matar o Papai Noel. Os adultos descobrem que a mãe deles, em Uberlândia, antes da viagem, trocou os presentes com a irmã, que mora em Araguari e tem duas filhas. Tentando contornar a situação, colocaram as crianças para conversar ao telefone. A priminha conta que ganhou a pistola do Power Ranger e a irmãzinha, o laptop do Batman. Eles falam que ganharam a Barbie e o tapete. Com alívio, concluem que o bom velhinho se enganou e que os presentes estavam a salvo. Depois, os netos encontram na árvore uma roupa do Power ranger para cada um. Vestem, incorporam o personagem e esquecem a frustração.
            O maior problema, na verdade, foi o pai, que ficou emburrado, deitado no sofá. Desenterrou da memória um antigo trauma da infância, de um Natal quando tinha seis anos. Na época, escreveu uma cartinha para o Papai Noel e endereçou para o Pólo Norte. Pediu um Rifle Super Tiro, uma arma de plástico espetacular, que espocava 20 tiros fortes em sequência. Ganhou uma Super Mouse, que dava cinco tirinhos fracos. Também queria matar o Papai Noel.

Retratos de infância

Luiz Cláudio com 3 anos de idade

         Em Uberlândia, há 40 anos atrás, a região nas proximidades da atual Avenida Rondon Pacheco, no bairro Lídice, era toda coberta de mato, com inúmeros lotes vagos. No local da Rondon passava um córrego, que muitas vezes era usado como despejo de esgoto. Havia muita área verde, vacas e cavalos soltos. Na época, morávamos na Avenida Professor Mário Porto, dois quarteirões acima do córrego.
           Neste bairro, meus filhos foram criados brincando na rua. Especialmente um deles adorava a vida livre, leve e solta. Sempre estava desaparecido na hora de ir para a escola e eu saia procurando-o pelas vizinhanças. Aos cinco anos, troncudo, pernas grossas, bochechas coradas, roupa suja, encontrei-o suado subindo o morro com uma varinha de anzol em uma das mãos e na outra, uma latinha com minhocas, sorrindo feliz. Estava atrasado para a escola e perguntei-lhe, zangada, onde ele estava. Respondeu com sinceridade: "-Pescando no bosteiro!"
          Em outra ocasião, aos quatro anos, chegou em casa puxando um cavalo branco e magro em uma corda. Explicou que era o cavalo que o seu padrinho , que morava no Carmo, havia enviado para ele. Contou que pediu a um senhor para laçar o cavalo no pasto, pois não tinha conseguido. Espantada, soltei o pobre animal e ele fez um escândalo. O problema é que realmente o padrinho tinha prometido um cavalo para ele, nunca deu e criança não esquece.
          Na frente da escolinha onde ele começou a estudar aos cinco anos, havia um enorme poste de concreto da rede elétrica . Até hoje me pergunto porque aquele poste tinha que estar logo ali. Dia sim e outro também, ele se agarrava ao poste para não entrar na escola. Era uma luta árdua arrancá-lo dali (mãe sofre). Pensei que ele não iria virar gente. Mas Deus é misericordioso, e quando ele fez vestibular para medicina, na UFU, aos 17 anos, foi aprovado em primeiro lugar.
        Pensando em tudo isso, enviei-lhe um email, depois que ele  já era pai de dois filhos, perguntando-lhe sobre as lembranças que tinha da sua infância. Respondeu-me com estas palavras:"ganhei meu Rifle Super Tiro no Natal, tive meu Falcon olhos de águia, dezenas de playmobil, comprei minha primeira espingardinha de chumbinho com o dinheiro que economizei do lanche, pesquei no bosteiro, nadei nele, peguei giardia, bicho-de-pé, oxiuríase, berne na testa, joguei futebol na rua, cortei fundo o pé, levei ponto, finquei prego enferrujado no dedo, chupei manga e bebi leite (e não morri até hoje), brinquei com fogo (e não queimei o dedo), quase morri afogado na lagoa de Formiga, me perdi na praia com o meu baldinho catando conchinhas, caí várias vezes da bicicleta, matei passarinho com estilingue, brinquei de guerra de argila, de mamona e de sal grosso, desci morro com carrinho de rolimã que eu fiz. Mas o principal é que tive bom exemplo dentro de casa e que fui amado".
            E assim, com amor, a vida continua e tudo se repete. Quando os filhos dele eram pequenos, também faziam uma travessura atrás da outra. Um dia, a mãe disse a um que, na época, estava com quatro anos: -"Ah, Vítor, espero que um dia você ainda vire gente!" Ele dormiu e quando abriu os olhinhos no dia seguinte, perguntou:
 -" Mamãe, eu já virei pessoa?"
            

quarta-feira, 28 de novembro de 2018

A volta da ararinha-azul





            A ararinha-azul, Cyanopsitta spixii, é uma das menores das treze espécies de arara encontradas no Brasil. Foi considerada extinta na natureza em outubro de 2000, quando as últimas sumiram do céu brasileiro, por maior que tivessem sido os esforços feitos pelo "Projeto Ararinha na Natureza" para salvar a espécie.
       Agora, a revista Veja de 21 de novembro, numa reportagem intitulada "Olha elas aí outra vez", traz uma ótima notícia:  as ararinhas-azuis estão de volta. Sairão da Alemanha e da Bélgica e virão para o norte da Bahia, no primeiro trimestre de 2019, para duas áreas de conservação que estão sendo criadas na caatinga, em Juazeiro e Curaçá. Elas se livraram da extinção porque uma parcela das que foram contrabandeadas para a Europa e Ásia, no famigerado tráfego de animais silvestres, acabou sendo resgatada por ONGs de preservação animal e conservada em cativeiro. Hoje restam 158.
         Isso é uma história interessante, que daria um filme. Aliás, já deu. No longa metragem de animação, "Rio", que foi indicado ao Oscar, a estrela é Blu, uma ararinha-azul que caiu do ninho no Rio, foi capturada e levada para os Estados Unidos.  Voltou ao Rio, passou por uma série de apuros, conheceu a fêmea  Jade e viveram felizes para sempre.
        Também as ararinhas-azuis de verdade terão que vencer uma série de obstáculos até poderem viver na natureza, felizes para sempre. As primeiras cinquenta desbravadoras  viajarão de avião de carga viva até Petrolina, em Pernambuco, o local mais próximo da reserva. A viagem dura dez horas. Antes, tomarão medicamentos para viajarem calmamente adormecidas em caixinhas, duas a duas. No aeroporto, passarão oficialmente dos cuidados dos veterinários alemães para a equipe brasileira. Daí, serão transportadas em camionete até Curaçá, onde aprenderão a viver em liberdade. Parece fácil mas não é, será um longo aprendizado. Por exemplo, precisam ser ensinadas a reconhecer e captar na natureza as frutas, folhas e sementes de que se alimentam. Até agora, receberam tudo pronto no bico. Também precisarão encontrar locais apropriados para fazer o ninho. Para isso, faz parte do projeto plantar na caatinga, único bioma exclusivamente brasileiro, pés de caraibeira,  árvore alta na qual os antepassados da ararinha-azul faziam ninhos. Outro problema é que precisam saber reconhecer predadores, como serpentes e macacos (caso contrário, logo estarão todas mortas). Assim, serão usados sons e figuras de predadores, para causar medo e ativar o instinto de preservação. Outra barreira a ser vencida é que as avezinhas são escaladoras, gostam de subir cada vez mais alto nos galhos. Terão que aprender qual galho será capaz de suportá-las, senão será tombo na certa. Além disso, precisam entender que são bichos e não gente como a gente, pois animais criados em cativeiro se percebem mais como humanos do que como seres da sua própria espécie. Mais uma barreira: a população no entorno da reserva precisará ser conscientizada para participar no processo de reintegração.
        Entre tantos obstáculos a vencer, talvez o maior desafio seja a reprodução. Além da necessidade de local apropriado para nidificação, a gestação das ararinhas -azuis, de trinta dias, produz apenas dois filhotes, uma baixa taxa de fertilidade, que contribui para a extinção da espécie. As avezinhas até que se acasalam, mas como a população é reduzida, a infertilidade é alta.
         Com tanto trabalho para se salvar da extinção uma única espécie animal, pode-se pensar que tudo isso é um exagero. Mas cada espécie à beira de desaparecer é indício de que uma parte do meio ambiente, essencial á sobrevivência de outras espécies e do homem também, está desaparecendo.
          Oxalá  a ararinha-azul tenha sucesso na sua reintrodução na natureza e volte a colorir com seu voo os céus do Brasil.


terça-feira, 20 de novembro de 2018

O gato preto




        O Léon é um gato preto que participa da nova novela da Globo, "O sétimo guardião". Ele é misterioso, tem poderes, não é bem um gato e sim uma pessoa transformada em gato. Mas a história que vou contar é sobre um gato normal, bem guloso.
     Tenho uma casa de aluguel e resolvi colocá-la na imobiliária, para evitar desgaste com os inquilinos. Só que eu não sabia da existência do gato preto.
    Acontece que ela foi alugada para inquilinos que possuem dez gatos: brancos, marrons, malhados, pretos. Gatos no sofá, no muro, na sala, no quintal, na cozinha. Tudo bem se eles ficassem por ai. Mas o problema era o gato preto. Não porque dizem que gato preto dá azar, mas porque toda noite o felino saia sorrateiro, lépido, pisando macio, corpo elástico, olhinhos verdes brilhando no escuro. Ia atormentar a vizinhança. Entrava na cozinha da D. Tetê (nome fictício, para proteger a personagem) e atacava a comida de quatro gatos filhotes,  indefesos perante a audácia do gatuno que, além de tudo, ainda batia neles. D. Tetê, indignada, foi reclamar com a vizinha, minha inquilina.
O gato preto, alheio a tudo, continuava suas peregrinações, ora na casa da D. Tetê e ora na casa de uma amiga minha, onde batia no Toninho e na Princesa, seus gatos de estimação. Como se não bastasse, ainda subia no fogão e comia nas panelas destampadas, lambendo os beiços. Minha amiga passou a deixar a cozinha fechada, mesmo quando o calor estava insuportável. Culpa do gato preto.
    Um belo dia, D. Tetê veio na minha porta. Desfilou um rosário de lamentações sobre as traquinagens do felino. Queria providências imediatas, até pensei que teria um ataque cardíaco ali mesmo. Sugeri encurralar o gato na cozinha, colocar num saco e soltar bem longe (fazer o que?). Ela ficou estupefata com a sugestão, disse que eu não sabia como era perigoso um gato encurralado. Até me ofereci para ajudar, mas não chegamos a nenhum acordo. E eu, como bióloga, jamais poderia sugerir algo mais drástico.
    Depois, passeando com minhas cachorrinhas (que, felizmente, nunca foram atacadas pelo malvado) encontro-me com a D. Tetê. Ela me pergunta o que vou fazer. Sem saída, prometo-lhe que vou telefonar para a imobiliária e reclamar dos inquilinos. Ligo e conto o caso do gato. A atendente ri da história, fala que nunca receberam reclamação deste tipo. Promete consultar o departamento jurídico. Enquanto isso, o gato preto, gordo de tanto atacar a comida alheia, continua atormentando.
      Em uma manhã, indo buscar pão quentinho na padaria, vejo o gato preto estendido na beirada do passeio, morto. Mortinho. Sem nenhum arranhão, sem sangue, sem tripa pra fora, sem nada. Os pelos brilhando, olhinhos fechados, patinhas encostadas umas nas outras, bem arrumadinho. Abismada, meu primeiro pensamento foi: -"A D. Tetê matou o gato!"
      Chego em casa, conto o acontecido. Minha amiga liga dizendo que o gato preto morreu. A D. Tetê toca o interfone e pergunta se já sei da novidade. Olho bem para ela, tentando decifrar seus pensamentos. Os olhos estão marejados, a voz entrecortada. Não, não pode ter sido ela, a não ser que seja uma excelente atriz. Mas olhos marejados como, se detestava o gato?
    A vizinhança passou a fazer especulações. Teria sido o gato preto envenenado na calada da noite, com veneno de rato? Teria levado uma paulada ou uma pedrada? Ou foi atropelado por um motoqueiro distraído? Por um carro desgovernado? Mas como foi parar no passeio, assim tão arrumadinho? Mistério.

       Sei que o gato preto se foi. Mas não sei se deixou saudades.


terça-feira, 11 de setembro de 2018

Sete de setembro

Foto no dia do desfile

    
            Neste último sete de setembro, Dia da Independência do Brasil, assisti ao desfile na Avenida Floriano Peixoto. Os tanques de guerra, os jipes, os  militares marchando em compasso, a bandeira do Brasil, o Hino da Bandeira.  O Corpo de Bombeiros, com uma bonita ala de mulheres e crianças dentro do caminhão vermelho brilhante acenando para a plateia. Militares com uniforme de camuflagem, segurando cães policiais e rottweiler enormes, fizeram a alegria da criançada que estava na beira da calçada agitando bandeirinhas do Brasil. Eles depois pararam na praça para tirar fotos, inclusive comigo e com o neto de dois anos, que ficou aterrorizado com a bocarra do rottweiler A Infantaria Motorizada, carros e motos da polícia com sirenes ligadas. Os escoteiros. Pessoas da terceira idade desfilando com bolas enormes. Acrobacias com bicicletas. Desfile de fuscas antigos e bem conservadinhos. Cavaleiros com camisas iguais e coloridas, desfilando com pangarés franzinos e com marchadores de passos dançantes. O colégio militar. Várias entidades, algumas bem diferentes, como a Associação Brasil Soka Gakkai Internacional e a Cultura Racional do Brasil para o Mundo. Escolas municipais e estaduais, com bandeiras, tambores, faixas, dançarinas, acrobatas e crianças bem comportadas parecendo orgulhosas de estarem desfilando. Gostei principalmente de uma, que homenageou os coletores e varredores de rua, e  confeccionou tudo o que foi utilizado no desfile reciclando material, como os tambores de plástico azul e a saia de jornal da bailarina.
        Fico empolgada com o desfile das escolas, pois no planejamento do desfile estão os professores, tentando ensinar aos alunos a respeitar o planeta Terra,  a saber quais deveres temos como brasileiros, que país é esse e o que é amar a terra onde nascemos. Ainda mais nestes tempos em que falta ao povo brasileiro um pouco mais de paixão pela Pátria. Ainda mais neste Dia da Independência quando o Brasil todo estava traumatizado com o atentado a faca sofrido pelo candidato á presidência do Brasil, ocorrido na véspera.
Apreciando o desfile, pensei no distante sete de setembro de 1822, quando D. Pedro I mostrou que se preocupava com o Brasil. Impulsionado por suas ideias liberais, gritou  às margens do riacho Ipiranga a frase que passou para a história: “Independência ou morte!” Revoltado, resolveu romper definitivamente com a autoridade do pai, D. João VI (um caso de filho revoltado com o pai e que deu certo) e proclamou o fim dos laços coloniais do Brasil com Portugal. A cena está registrada em um famoso quadro de Pedro Américo, com D. Pedro majestoso, em cima de um cavalo fogoso, cabelos penteados, espada em riste, uniforme elegante e impecável, cercado por inúmeros cavaleiros também garbosos e bem vestidos.            Pessoalmente, acho que a cena não foi tão espetacular assim, deveriam estar todos cansados, empoeirados e descabelados (viajavam de Santos para São Paulo, a cavalo e em estradas de terra). Como escreveu Leandro Narloch em seu livro “Guia politicamente incorreto da história do Brasil”, para fabricar um espírito nacional é normal que se jogue um brilho a mais em certos episódios. Acrescentou que um bom jeito de amadurecer, ao interpretar a nossa história, é admitir que alguns heróis da nação eram simplesmente pessoas do seu tempo.
Enfim, mesmo se estivesse suado e cansado, devemos a D. Pedro a independência do Brasil do jugo português. Falta agora ficarmos independentes do jugo do extremismo, da radicalização, da intolerância e da corrupção, que tanto mal fazem ao nosso país.








terça-feira, 28 de agosto de 2018

A Terra ferida




                  

          Em 1855 o cacique Seattle, de uma tribo no estado de Washington, enviou uma carta ao presidente dos Estados Unidos, quando o governo pretendia comprar o território ocupado por sua tribo. Um século e meio depois, o que ele escreveu continua bem atual. E muito mais preocupante. Há trechos assim: "sabemos que o homem branco não compreende o nosso modo de viver. Para ele um torrão de terra é igual ao outro. Porque ele é um estranho, que vem de noite e rouba da terra tudo quanto necessita. A terra não é sua irmã, nem sua amiga, e depois de exauri-la ele vai embora." Ou então: "não se pode encontrar paz nas cidades do homem branco. Nem lugar onde se possa ouvir o desabrochar da folhagem na primavera ou o zunir das asas dos insetos". Em relação ao ar, o cacique Seatle escreveu : "o ar é precioso para o homem vermelho, porque todos os seres vivos respiram o mesmo ar: animais, árvores, homens. Não parece que o homem branco se importe com o ar que respira." 
           E advertiu ao presidente : "se eu me decidir a aceitar, imporei uma condição: o homem branco deve tratar os animais como se fossem seus irmãos. Sou um selvagem e não compreendo que possa ser de outra forma".  Termina lembrando que "depois que o último homem vermelho tiver partido, a alma do meu povo continuará a viver nestas florestas e praias, porque nós as amamos como um recém-nascido ama o bater do coração de sua mãe. Se te vendermos a nossa terra, ama-a como nós a amávamos. Protege-a como nós a protegíamos. E com toda a sua força, o seu poder, e todo o seu coração, conserva-a para os seus filhos, e ama-a como Deus nos ama a todos"                                                     Penso que se o cacique Seattle vivesse hoje, estaria muito triste. O homem branco não tem cuidado nem das terras que ele vendeu e nem do planeta como um todo. A Terra está ferida, muito ferida. Não está protegida, nem conservada, nem amada. O ar que era tão precioso para o homem vermelho está poluído. Em cidades como Pequim, os moradores precisam de máscaras pra respirar. Com o aquecimento global, surgem incêndios gigantescos como os da Califórnia, extremamente rápidos, agressivos e perigosos, causando tempestades de fumaça e dificultando a respiração das pessoas. Os animais sofrem com o aquecimento global causado pelo homem branco, estão morrendo aos milhares, não são tratados como irmãos. Por exemplo, Clóvis Rossi, colunista da Folha, relata que na Coreia do Sul o calor recorde de 2018 provocou a morte de 4,5 milhões de galinhas, patos, porcos e vacas e na Suíça, uma tonelada de peixes mortos foi retirada dos rios porque a temperatura elevada reduziu o nível de oxigênio da água. Ele cita um estudo recente de cientistas britânicos que afirmam que o efeito dominó em cascata de gelo que derrete, mares que aquecem, correntes marítimas que mudam e florestas que morrem, pode empurrar a Terra para um estado de estufa no qual todos os esforços humanos para reduzir as emissões serão inúteis. O colunista concluiu que a Terra caminha pra se transformar em uma fornalha infernal. Ainda bem que o cacique Seattle morreu sem saber disso.
        E, como selvagem, ele ficaria horrorizado ao saber da enorme quantidade de plástico que o homem branco joga nos oceanos. A alma do seu povo, que deve continuar vivendo nas suas florestas e praias, deve estar estarrecida com a poluição das águas. Segundo pesquisa divulgada pela ONG International Coastal Cleanup, que passou o ano de 2016 coletando milhões de itens descartados na costa dos cinco continentes, as garrafas de plástico e suas tampinhas são os produtos que mais poluem os mares. Depois delas, as bitucas de cigarro: encontraram 1,86 milhão delas no período da pesquisa. Em seguida, as embalagens de alimentos: 762.000 (principalmente de doces e na costa dos Estados Unidos), as sacolas de supermercado com 520.000, as tampas de copo com 419.000 e os canudinhos, com 409.000.
              Pois é, cacique Seattle, os animais do mar também estão morrendo por causa da poluição das águas causada pelo homem branco. E como você escreveu, tudo quanto acontece aos animais pode acontecer também ao homem. E tudo que fere a Terra, fere também os filhos da Terra.


sábado, 2 de junho de 2018

Sobre potes e universos

Potes de plástico
Stephen Hawking


            Estava eu envolvida nos meus afazeres domésticos, guando me deparei com a necessidade de guardar o feijão cozido na geladeira.  Procurei um pote de plástico, de preferência daqueles de sorvete. Incrível como os potes são dinâmicos, parece que têm vida própria. As tampas somem como por encanto ou então aparecem várias tampas sem os potes. Ou de repente aparece uma tampa, vindo não sei de onde, que se encaixa direitinho em um pote guardado há anos sem a  tampa. Ou, sem mais nem menos, passam a existir apenas potes quadrados e tampas redondas. Um mistério. O pior é quando a gente pega um pote de sorvete na geladeira pra esquentar um pouco de feijão e o que tem dentro? Sorvete!
    Consegui guardar o feijão e continuei os meus inúmeros afazeres miudinhos. Fui trocar os jornais com os quais forro o chão pra Duda, minha cachorrinha, fazer xixi.  Sempre uso a "Folha de São Paulo" e como geralmente dou uma olhada no que está escrito, vi um artigo intitulado "Hawking deixou um último estudo sobre o "multiverso." Comecei a ler com interesse. O estudo, resultado de 20 anos de pesquisa, foi enviado para publicação dez dias antes dele morrer, em março agora (nem sabia que ele tinha morrido) e indica um caminho para a busca de universos paralelos. O Big Bang não teria criado apenas um universo, mas incontáveis. Alguns seriam bem parecidos com o nosso, talvez com planetas semelhantes à terra e indivíduos como os daqui; outros poderiam ser totalmente diferentes . Céus, se eu já me sentia menor que um grão de areia no oceano, quando pensava no universo, como me sentir agora, com infinitos universos? Comecei a divagar, pensando na genialidade deste grande físico inglês, Stephen Hawking. Ele foi diagnosticado aos 21 anos com esclerose lateral amiotrófica e lhe deram três anos de vida, mas viveu mais de 50 com a doença. E ainda casou-se duas vezes, teve três filhos, viajou pelo mundo todo e tinha muito senso de humor. Ao longo dos anos, perdeu a voz e todos os movimentos do corpo, até se tornar basicamente um cérebro brilhante em cima de uma cadeira de rodas. Ele tinha uma voz eletrônica e por meio de um sintetizador escolhia as palavras na tela do computador, usando o movimento das bochechas (e eu a, uma reles mortal, contrariada porque meus joanetes não estão cabendo nos meus sapatos). Mesmo com tantas limitações físicas, foi um dos cientistas que mais contribuiu com a física quântica, com os estudos sobre a origem do universo e as radiações dos buracos negros (e eu, sem conseguir encaixar uma tampa redonda num pote quadrado pra guardar o feijão na geladeira).
         Enfim, recortei o artigo sobre o Hawking e guardei, não poderia deixar a Duda fazer xixi num artigo tão importante.  E pra me consolar sobre minha pequenez dentro  destes universos infinitos, fui ouvir a música "Detalhes" do Roberto Carlos: "detalhes tão pequenos de nós dois, são coisas muito grandes pra esquecer e a toda hora vão estar presentes, você vai ver..."  Continuando, ele fala do ronco barulhento do seu carro, da velha calça desbotada, dos erros do seu português ruim. Consolei-me com essa canção tão bonita sobre coisas miudinhas e fui organizar a prateleira dos potes plásticos, já que não tenho mesmo a genialidade do Hawking.

sexta-feira, 18 de maio de 2018

Retalhos da Infância

Lia escrevendo sobre a fadinha do dente

Uma das obras de arte da Lia


As quatro mães e alguns filhos, a Maíra no meio


           Como escreveu Cora Coralina, nós somos feitos de retalhos, de pedaços coloridos de cada vida que passa pela nossa e que a gente vai costurando na alma. Nem sempre são felizes, nem sempre são bonitos, mas sempre acrescentam e fazem a gente ser como a gente é. Em cada retalho, uma lição, um carinho, uma saudade, uma lembrança que nos torna mais pessoas, mais humanos, mais completos. E de retalho em retalho nos tornamos um imenso bordado de nós mesmos.
          Na minha colcha de retalhos, os que mais gosto são os acrescentados pelas crianças da minha vida. São retalhos bem coloridos, divertidos, originais. Por exemplo, um retalho recente acrescentado pela Lia, minha netinha de sete anos que mora nos States. Ela é uma  artista, faz desenhos e artes incríveis, combina as roupas como uma estilista, faz cartões lindos todo dia para o pai, enfeita a casa com  bilhetes coloridos, faz toucas e cachecóis de crochê, uma graça. Mas acontece que agora ela perdeu seu primeiro dentinho de leite. No começo, com o dente bem mole, estava entusiasmada esperando a chegada da fadinha do dente que iria pegar o dentinho debaixo do travesseiro e trocar por uma nota de cinco dólares. No entanto, quando a fadinha chegou na calada da noite e fez isso mesmo, caiu em prantos . Queria o dentinho de volta para guardar para sempre. Daí, tentou cativar a fadinha e fez um tipo de altar pra ela, com flores, guloseimas, bugigangas e escreveu uma cartinha (com alguns errinhos de inglês) pedindo o dentinho de volta. A fadinha aceitou.
           Depois, foi a confusão do terrário.  Tudo começou quando estive lá e construímos a três (ela, o irmão Enzo e eu) um terrário fechado  para observar aranhas, minhocas, insetos, a formação da chuva, as plantinhas crescendo. Adoravam coletar os animais e colocar dentro, mas a Lia ficou com pena das minhocas, remexeu a terra e soltou todas. Antes, fez uma casinha de folhas e barro para elas. O Enzo ficou indignado. O problema piorou no dia em que foram ao parque e encontraram um besouro bonito, grande, preto luzidio. O pai teve que carregar o besouro na mão por vários quarteirões. A Lia não quis colocar o inseto dentro do terrário, preferiu montar um local  para ele, decorado com pedrinhas, flores e grama. O Enzo ficou bravo novamente. A mãe foi apaziguar a briga e dar uma olhada no besouro, todo confortável no seu recanto florido. E, surpresa, na verdade era uma barata, e das grandes! Foi a vez dela ficar brava e indignada com o marido, que nem conhecia uma barata e levou uma pra dentro de casa. Ele ficou com nojo de ter carregado a barata na mão. A Lia caiu em prantos novamente porque não queria que matassem a barata. Ânimos acalmados, optaram por soltar a barata no parque onde a haviam encontrado.
       A minha outra netinha de sete anos, Maíra, também é uma graça e sempre acrescenta retalhos coloridos na minha colcha. No almoço do último dia das mães, estávamos quatro mães reunidas para tirar a foto clássica, quando ela chegou rápido e  se posicionou bem na frente do grupo para sair na foto. A turma mandou ela sair, pois  não era mãe . Ela respondeu que era futura mãe e não arredou pé, foi a mais sorridente do grupo.
       E tem também as crianças dos vizinhos, dos parentes, dos amigos. São muitos retalhos coloridos. Lembro-me de uma vizinha que tinha quatro meninos. Um deles era meu amiguinho inseparável. Um dia, a filha pequena de uma amiga da vizinha estava tomando banho no chuveiro . Ele ficou olhando escondido a menina peladinha. A mãe o pegou no flagra e disse: "Mas que coisa feia!"  E ele, com os olhinhos brilhando: "Não é feio não, mamãe, é só um rachadinho assim..." E fez um sinal vertical com a mãozinha, de cima pra baixo.
            Enfim, parafraseando a poetisa, é assim mesmo que a vida se faz, de pedaços de outras gentes que vão se tornando parte da gente também. E nunca estaremos prontos e acabados, pois sempre haverá um retalho novo para se adicionar à alma.


quinta-feira, 8 de março de 2018

Açaí, sorvete e Dayana

Delícia de açaí

Um gostoso sorvete de chocolate

Dayana abraçando a filha no parquinho do orfanato Fundana (fonte: Folha de São Paulo, 15/02/18)
       Gosto de escrever textos divertidos para alegrar o leitor. Por exemplo, comentando um vídeo que recebi.  Nele, uma mulher de uns 30 anos, bem morena, rosto redondinho, lábios carnudos e bem maquiada, falando indignada, séria e com voz cristalina, mais ou menos assim: "ôu, esse trem de homem malhado não presta. Ele só te chama pra tomar açaí. O problema é que ele paga o dele e eu pago o meu. E tem mais,  é só açaí com banana, senão engorda.  Ele fica vigiando pra ver se a gente vai colocar  leite condensado e leite em pó, e nem é ele que vai pagar. Hoje o que eu gosto é de homem barrigudo e gordinho, são os melhores que se tem. Ele te chama pra tomar uma e toma todas. E você pode pedir porção de batata com queijo, mandioquinha, peixe, torresmo. Quando você fala que vai embora, ele chama pra tomar a saideira.  Depois paga tudo e ainda te leva em casa. Hoje tá na moda é homem gordinho. Quando vejo homem sarado eu corro".
            Eu ri muito desse vídeo, principalmente porque adoro açaí com leite condensado e leite em pó. Lembrei-me de um texto da Danuza Leão, em que ela fica indignada quando vai a restaurantes e o garçom traz uma bola bem pequenina do seu sorvete preferido. Quanto mais caro o restaurante, menor a bola. Ela escreve sobre vários prazeres que a gente deixa de ter, com tantos deveres, tantas preocupações em acertar, tanto empenho em passar na vida sem pegar recuperação. E  aí a vida vai ficando sem tempero e sem graça. Termina pedindo ao garçom, entre outras, cinco bolas de sorvete de chocolate. Enfim, concordo  com as duas de que é bom demais comer o que a gente gosta.
         Mas daí fico pensando em tantas pessoas que passam fome, e não tem como deixar de escrever sobre as tristezas da vida. Como o caso de Dayana e seus quatro filhos. Li sobre ela numa matéria da Folha de São Paulo, de 15/02/2018. O repórter Anthony Faiola, do Washington Post, contou de sua visita ao maior orfanato da Venezuela, em Caracas. O pátio era uma pista de obstáculos de crianças abandonadas. A assistente social que o acompanhava ia explicando sobre as crianças. Passou por ele um menininho robusto em um triciclo, apelidado de "El Gordo", mas quando foi deixado no orfanato meses atrás era pele e osso. E a menininha de vestido florido quase não falava mais. A mãe a tinha abandonado em setembro em uma estação de metrô, com uma bolsa de roupas e um bilhete suplicando que alguém a alimentasse. Centenas de pais têm feito isso na Venezuela, onde a fome e a miséria crescem sem parar. Não têm como alimentar seus filhos e os estão entregando. Não porque não os amem, mas porque os amam (quer coisa mais triste?). E os bebês, que antes eram facilmente adotados, não o são mais, pois os pais adotivos não conseguem arcar com as despesas. No país, cerca de  71% das crianças com menos de cinco anos não têm alimentação  adequada. A fome obriga as famílias a fazer escolhas dolorosas, como no caso de Dayana, 28 anos . Em novembro passado ela perdeu seu emprego de faxineira e entregou seus dois filhos menores para o orfanato. Como a entidade não aceita crianças maiores, ele ainda está tentando alimentar o de 8 e de 11 anos em casa. O orfanato oferece a ela leite, macarrão e sardinha, mas não é suficiente. Contou ao repórter que depois do jantar , os meninos pedem: "Mãe, quero mais". Mas ela não tem mais nada pra dar a eles.
            Acho que eles iriam adorar ter como sobremesa açaí com  leite condensado  ou  sorvete de chocolate. 

sábado, 3 de março de 2018

Para as mulheres, com carinho







            Em  oito de março comemora-se o Dia Internacional das Mulheres. Escrevo então um texto para elas, de presente, com algumas passagens que achei muito lindas.
       Sempre que perguntavam a Einstein se ele acreditava em Deus, respondia que acreditava no Deus de Spinoza. Quem não conhecia Spinoza ficava sem entender. Ele, Spinoza, foi um filósofo holandês do século XVII e que escreveu um texto como se Deus estivesse falando com os homens,  com trechos assim: "O que eu quero é que saias pelo mundo e desfrutes da sua vida. Eu quero que gozes, cantes, te divirtas e que desfrutes de tudo o que fiz para ti. Minha casa está nas montanhas, nos rios, nos lagos, nas praias. Aí é onde Eu vivo e expresso meu amor por ti. Se não podes me ler num amanhecer, numa paisagem, no olhar de teus amigos, nos olhos de teu filhinho...Não me encontrarás em nenhum livro!Para de ter tanto medo de mim. Eu não te julgo, nem  te critico, nem me irrito, nem te incomodo, nem te castigo. Eu sou puro amor. Para de me pedir perdão. Não há nada a perdoar. Se Eu te fiz...Eu te enchi de paixões, de limitações, de prazeres, de sentimentos, de necessidades, de incoerências, de livre-arbítrio. Como posso te culpar se respondes a algo que eu pus em ti? Como posso te castigar por seres como és, se sou Eu quem te fez?Que tipo de Deus pode fazer isso? Eu não quero que acredites em mim. Quero que me sintas em ti quando beijas tua amada, quando agasalhas tua filhinha, quando acaricias teu cachorro, quando tomas banho de mar. Tu te sentes grato? Demonstra-o cuidando de ti, de tua saúde, de tuas relações, do mundo. A única certeza é que tu estás aqui, que estás vivo e que este mundo está cheio de maravilhas. Para que precisas de mais milagres? Para que tantas explicações? Não me procures fora! Não me acharás...Procura-me dentro...Aí é que estou, batendo em ti".
          Outro texto que gostei foi do Rubem Alves. No seu livro "Ostra feliz não faz pérola", ele conta que de vez em quando lhe perguntam se acredita em Deus. Ele responde que  acredita mais que a maioria das pessoas e que tem até 33 nomes para Ele. É só falar o nome, sentir na imaginação o que o nome diz e a alma se enche de tanta alegria que isso só pode ser um pedaço de Deus. Mas é preciso falar devagarzinho e ir pensando...Por exemplo: o mar de manhã. O perfume do capim. O olhar e tudo o que ele olha. O sono na cama. A cadela e os cãezinhos. Um relâmpago silencioso. O silêncio entre dois amigos. Morder uma jabuticaba. O canto do sabiá. A terra boa. Ele cita vários outros pedaços de Deus que conhece . Acrescenta que a marca do Divino é o milagre cotidiano que é este mundo: a vida, o olho, a asa de uma libélula, a chuva, a sopa de fubá, o pão quentinho, o perfume do jasmim, a teia de aranha, um poema, o amor entre duas pessoas. Conclui , assim como Spinoza, que não precisamos de mais milagres, Deus já espalhou muitos pelo mundo.
       Assim, neste dia dedicado às mulheres, desejo que o Deus de puro amor proteja e abençõe a todas. E que cada uma consiga, todo dia e à sua maneira, encontrar os pedaços de Deus  ao longo desta vida que, por si só, já é um milagre.

sábado, 17 de fevereiro de 2018

Olhos assustados

A turma de adultos que foi para a Bahia (só o de óculos e o de camisa branca não cairam do banco...)

No caminho na volta da praia

Os netos ouvindo histórias
        Assisti um ótimo filme chamado "Grandes Olhos", um drama real sobre a pintora Margaret Keane, que fazia pinturas incríveis e únicas de meninas  com olhos muito grandes e tristes. O filme mostra o despertar da artista e a sua luta contra o marido, na maior fraude da história da arte, pois ele se dizia autor das obras da esposa e o mundo todo acreditou.
       Nem sei porque, associei o filme com olhos assustados e espantados que presenciei em cenas que aconteceram na nossa viagem de final de ano. Fomos, num grupo de oito pessoas, visitar a filha que mora na praia de Algodões, BA. Lugar lindo, mas difícil de chegar, com estrada de terra esburacada. Como o trajeto final foi o mais difícil e na escuridão da noite,  com o motorista um pouco perdido e com medo de assalto, o grupo já chegou de olhos assustados. Na hora de dormir, o Zé, meu marido, precisava de uma tomada para ligar o aparelho que usa para respirar melhor. Encontrada a tomada, a cama não dava certo com o cortinado usado para evitar a multidão de pernilongos. Emendou-se duas camas e ele se esparramou. No dia seguinte, estava com os olhos espantados: as camas se separaram, ele caiu no chão e ficou enrolado no cortinado e nos fios do aparelho. Primeiro tombo. Na noite seguinte, fomos comer pizza feita no forno de lenha, na pizzaria simples ao lado da casa da filha: mesas e bancos rústicos debaixo de árvores, chão de areia, velas, redes, um carinhoso cão labrador. Num mesmo banco grande, cinco pessoas sentadas.  Sem nenhum aviso prévio, o banco velho e carcomido pelo tempo foi vergando devagarzinho, quebrou e todos caímos  com olhos espantados. Rimos muito, menos o netinho que estava no meu colo e caiu em prantos. Segundo tombo do Zé. Noutro dia, quando  íamos pelo caminhozinho que chega até a praia, chegamos a uma ribanceira de areia alta. Falei para o Zé que ele não conseguiria descer por ali, que iria cair e eu não conseguiria segurá-lo. Teimoso, disse que era fácil. Escorregou de ponta cabeça, dobrando o joelho operado há pouco tempo. Olhos assustados novamente. Terceiro tombo. Na sequência dos acontecimentos, a bomba que retira água do poço para mandar para a casa, estragou. Assim, passamos a tomar banho de canequinha, esquentando água no fogão, mas o Zé se recusou.  Preferiu usar o chuveiro do quintal do vizinho. Mas, certa noite, depois de limpinho, com uma lanterna que não iluminava muito bem, trombou num formigueiro numa árvore. Formiga entrou pelos "zóio, zoréia e zovido". Não foi tombo, mas foi pior. Olhos assustados outra vez. Penso que ele não volta na Bahia tão cedo...
        Outras cenas que causaram espanto aconteceram na ceia de Natal. Moro no terceiro andar e resolvi fazer a ceia de Natal no décimo terceiro andar, no salão de festas. Fiquei presa no elevador duas vezes, uma delas com o Papai Noel. Um amigo vestiu a roupa calorenta do bom velhinho no meu apartamento. Colocou a barba, a peruca, o bigode, a touca, um travesseiro na barriga, encheu o saco com os presentes e tomamos o elevador. Ele emperrou entre o sexto e o sétimo andar. O Papai Noel suava em bicas. Falei pra ele tirar a roupa, mas não quis. Com os olhos assustados, ficamos presos uns bons minutos. Depois, foi a vez de uma moça que me auxiliava. Ela subia e descia o elevador sem parar (eu também). Levamos o filé ao molho madeira, ele acabou e ela não chegava com o chester com farofa e abacaxi, uma delícia. Claro, estava presa no elevador. Depois de meia hora, chegou com olhos assustados carregando a bandeja. Sem contar que levou uma mordida (não machucou) da minha cachorrinha york que estava com filhotinhos. Penso que ela não volta mais a me ajudar e que terei que trocar de Papai Noel...
        Penso também que muitos não acreditarão em tantas confusões. No caso da pintora, o mundo todo acreditou no marido mentiroso e ela precisou ir a um tribunal para provar que os quadros eram seus. No meu caso, tudo o que contei é a mais pura expressão da verdade.