A cada dois dias tentarei colocar um texto novo, para manter o interesse dos meus leitores e também algumas fotos para exemplificar alguns textos. Obrigada pelo apoio.

sábado, 28 de maio de 2011

Repartindo o pão

Paulo sentado em sua poltrona predileta e Yara ao fundo

          
           De vez em quando precisamos escrever sobre pessoas especiais que marcam nossas vidas. Uma delas é meu irmão Paulo, que faleceu recentemente, em Belo Horizonte. Deixou esposa, nove filhos, 23 netos e alguns bisnetos, que passaram o primeiro Natal sem ele. Além de tantos descendentes, deixou uma história de vida marcada pela honestidade, bondade, retidão de caráter e inabalável fé em Deus. Como eu era da idade dos seus filhos, o Paulo foi para mim um pai, um irmão, um conselheiro e um amigo mais velho.
 Mas, acima de tudo, ele foi um exemplo de como repartir o pão de cada dia. Morei em sua casa em BH, quando cursei o ensino médio. Era uma casa antiga, movimentada e elástica, no bairro Funcionários, que abrigava o Paulo, a Yara (sua santa esposa), os nove filhos (com idade entre um e 22 anos), eu e meus dois irmãos, dois sobrinhos e durante algum tempo, também a avozinha Anita, de cabelos branquinhos, educação de rainha e mãos macias. E ainda o irmão que estava com câncer e precisava de um ombro amigo para ampará-lo. Havia lugar para todos, mesmo se fosse em camas de armar e desarmar. E na hora das refeições, lembro-me bem do Paulo dividindo tudo de forma justa, depois de contar quem estava presente à mesa e quem faltava. Na hora da sobremesa, um pedaço de doce para cada um, do mesmo tamanho (não adiantava pedir mais). Era para ele uma árdua tarefa alimentar tantas bocas com o seu salário de inspetor da Secretaria de Finanças (era farmacêutico, mas nessa época não exercia a profissão). O orçamento era sempre apertado. Lembro-me do dia em que um de seus filhos menores pediu dinheiro para comprar presente de aniversário para o amiguinho que morava na casa abaixo. O Paulo, da sala, esbravejou que era para comprar um presente bem baratinho, que ele não aguentava mais comprar presentes para os meninos daquela casa(lá morava um médico que também tinha nove filhos). O problema é que o aniversariante estava bem sentadinho na sala e ouviu tudo.
Mais importante que o pão material, o Paulo repartia o pão do espírito. Distribuia para os que o cercavam a sua generosidade, o seu entusiasmo pela vida, o seu íncrível senso de humor. Sabia como ninguém soltar frases ferinas, inteligentes e engraçadas sobre qualquer assunto ou pessoa. Unia toda a família em torno de sua paixão pelo Atlético e pelo vôlei (sempre jogou vôlei no Minas, chegando a chefiar por uns tempos a delegação; quatro de seus filhos foram jogadores profissionais desse clube, e agora dois netos). Em suas orações, lembrava-se de todos (rezava o terço todos os dias com a Yara e era devoto do Padre Eustáquio).     
Deixou exemplo de marido e pai exemplar. Nunca o ví levantando a voz para a esposa ou para os filhos. Claro que deveria ter os seus defeitos, mas, sinceramente, não sei quais eram eles. A não ser, fisicamente, os joanetes enormes, os dedos dos pés encavalados e os joelhos um pouco tortos. Mas mesmo isso poderia ser considerado a sua marca registrada e não um defeito. Gostava de jogar truco, de saborear uma boa cachaça e de fazer discursos caipiras.  
No dia de seu enterro, foi comovente sentir como ele era querido por todos. E como parecia em paz, cercado pela esposa, filhos, netos, amigos e por inúmeras coroas de flores. Deixou saudades, mas é muito melhor sorrir por ele ter vivido do que chorar por ele ter morrido. Descanse em paz, juntinho de Deus e do Padre Eustáquio.

domingo, 22 de maio de 2011

O rodeio

           
        Na semana de exposições no Camaru, em Uberlândia, fui com uma turma de oito pessoas assistir à primeira noite de rodeios. Muita gente nas arquibancadas, luzes, holofotes, telões, policiamento intenso, som possante. Um luxo. A equipe do JR Rodeios agitando a galera e anunciando a chegada do mais famoso apresentador de rodeios, o Johnny Barreto. Depois de uma hora esperando, anunciam que o rodeio vai começar e os meus netos se empolgam. Anunciam que faltam três minutos, que se transformam em 15. Depois, que falta um minuto, que vira dez (o relógio deles é diferente). Em seguida, que faltam apenas 30 segundos. O neto conta nos dedos até trinta e nada. Conta novamente e nada. Pergunta, desapontado: ”Vovó, já contei duas vezes. Cadê os cavalos?”. Continuamos esperando, fazer o que.
Acendem duas fileiras de pólvora no chão e o Johnny entra triunfalmente, com estardalhaço, chapéu e calça de couro larga. Fogos de artifício iluminam o céu e o apresentador comanda uma dança. Todos (inclusive eu) dançam, mãozinhas prá lá e prá cá, batendo o pé. Os celulares são acesos e agitados. Grito de guerra para saber se os mais fortes são os homens ou as mulheres (as mulheres perderam, injustiça). Tudo, menos cavalo. O Johnny anuncia que o rodeio vai começar e chama os representantes de umas 40 entidades: Prefeitura, Sindicato Rural, Sociedade Protetora dos Animais. Depois é a vez de chamar os peões: o campeão de Uberlândia, o campeão de São Paulo, o campeão dos campeões, uns trinta (eu e os netos desesperados, esperando os cavalos). Para cada um que entrava, foguinhos cintilantes emolduravam o corpo (como faziam aquilo?). Aplausos do povão. Chega a vez das bandeiras. Um cavaleiro entra a galope, carregando a bandeira da paz.  Um cavalo na arena, que glória! A bandeira de Uberlândia, do Triângulo Mineiro, de Minas Gerais.  Cavalos rodopiando na arena. Escovados, com crinas douradas e rabos levantados. O Lucas entra carregando a bandeira do Brasil. Luzes de holofotes, fogos de artifício, efeitos sonoros. Todos cantam com entusiasmo o Hino Nacional.
Quando penso “agora vai”, o Johnny alardeia a homenagem a São Sebastião e a Nossa Senhora Aparecida, a padroeira dos rodeios. Surge uma cascata de fogos no meio da arena, lembrando as águas do rio onde foi encontrada. A platéia canta ”Nossa Senhora, me dê a mão, cuida do meu coração...”. Lindo, lindo. Mas os fogos causam uma fumaceira digna do maior incêndio e o público fica meio sufocado, muitos tossindo. De repente, abrem a porteira e surge um valente peão montado em um boi bravio. Meu Deus, um boi! Estava duas horas esperando um cavalo...Não teve nem graça, o peão caiu com a cara no chão. Tirou zero. Depois de várias seqüências de tombos e zeros, um herói conseguiu ficar mais de oito segundos no lombo do boi revoltado e a platéia foi ao delírio. Mas o boi se negava a sair da arena. Tentava chifrar os peões, que mostravam uma agilidade impressionante para subir na cerca. Então, o Johnny chamou o boi-madrinha. Entrou com majestade na arena um boi branco e enorme, sacolejando a corcova, trotando macio. Emparelhou com o boi revoltado, deram meia-volta juntos e saíram pela porteira. Que comportamento animal magnífico!
Bem, só vimos isto, não esperamos os cavalos. Aliás, nem sei se apareceram. Na hora da saída, conflito no grupo: uns queriam comer, outros queriam dormir. Os gulosos foram abandonados e fui embora com os sonolentos, encantada com o boi-madrinha.

Histórias de um doutorado

Dia de coleta de abelhas em reserva de cerrado

Abelha europa visitando flores de mataiba

           
Defendi a minha tese de doutorado em fevereiro de  2009, na primeira turma do doutorado em Ecologia e Conservação de Recursos Naturais da UFU. Deu certo, mas o que tem por trás de uma tese daria um livro interessante.
Por exemplo, na parte experimental. Coletei abelhas que visitavam uma mesma espécie de árvore (ou arbusto), chamada mataíba, em três áreas de cerrado. As áreas eram diferentes quanto ao tamanho, conservação e alterações causadas pelo homem. Pretendia descobrir como as diferenças entre os habitats infuenciam nas comunidades de abelhas do cerrado, quais as espécies mais comuns e as raras, qual o papel da mataíba na alimentação dos insetos (tudo muito lindo no papel, mas vai fazer!). Durante as coletas, em dois anos, aconteceu de tudo. Trombadas em caixas de marimbondos. Pés enfiados e torcidos em buracos de tatu. Ferroadas de abelhas. Chuvas torrenciais que encharcavam os ossos. Paradas azaradas em cima de formigueiros. Dores nos olhos, sob o sol escaldante, de tanto procurar enxergar alguma abelha. Chave trancada dentro do carro e aquela vontade premente de ir embora, sem ter como. Aconteceu até um  assalto, praticado por um quati (mamífero com cerca de meio metro, nariz pontudo, cauda longa com listras escuras, parecido com o guaxinim). Um dia, na Estação Ecológica do Panga, apareceu um quati caminhando lerdo e tranquilo na trilha. Veio na minha direção e da aluna que me auxiliava. Passou as unhas grandes e recurvadas nas nossas roupas, cheirou (eles têm excelente olfato)e foi em direção à sacola que estava no chão. Enfiou as unhas, roubou o saquinho de sanduíches e saiu correndo, olhando de soslaio para trás, com o cantinho dos olhos, desaparecendo entre as árvores. Passamos fome o dia todo.
Na escrita da tese, mil cálculos estatísticos: correlação de Pearson, índice de similaridade, qui-quadrado, curvas de rarefação, estimadores de riqueza, modelos matemáticos e mais um banco de dados gigantesco, com anotações de cada abelha (coletei 2078). Sai fumaça do cérebro e os neurônios são torrados. Entre uma coisa e outra, tentava vencer o medo que tenho do computador. Passei muita raiva, pois de repente, desapareciam todos os textos e gráficos. Alguns reapareciam em locais nunca imaginados e outros sumiam para sempre. Nas correções pelo orientador (ou desorientador?)os parágrafos vinham rabiscados com “incompleto”, “impreciso”, “desnecessário”, “sem sentido” e no final, não restava nada do texto, trabalho perdido (pesquisador sofre).
Mas valeu a pena. Como disse Mahatma Gandhi ”a alegria está na luta, na tentativa, no sofrimento envolvido; não na vitória propriamente dita”. Foi fascinante descobrir que uma única espécie de planta do cerrado é capaz de servir como fonte de pólen e néctar para 110 espécies de abelhas, 54 de vespas, 37 de dípteros e 35 de coleópteros. Entender o dinamismo e a estrutura da comunidade de abelhas e a importância da manutenção dos cerrados do município, mesmo os pequenos fragmentos, para conservação das abelhas, os mais importantes polinizadores. Enfim, como no município de Uberlândia apenas cerca de 8% do cerrado está em seu estado natural, urge um melhor conhecimento da flora e fauna dessa vegetação, para definir estratégias de conservação. Antes que seja tarde demais.

sábado, 14 de maio de 2011

Um passeio na Bahia

Nora , filhas e netos na canoa para atravessar o rio, no caminho de Ambuba




Pensar na Bahia é pensar em praia, mar morno, coqueiros, água de coco, descanso, e paraíso. Mas pode ser bem diferente disso.
Tudo começou com um planejamento estratégico entre as duas filhas, a nora e eu para que os três priminhos pudessem se encontrar na praia de Algodões, na casa da filha. Poderíamos também aproveitar a alegria e o prazer de estarmos juntas. Assim, o Enzo, de nove meses, atravessou os States. Na parada em Belo Horizonte, na casa dos tios, recebeu uma dentada homérica na cabeça, do “amiguinho” que ficou fascinado com sua careca luzidia. O Miguel, de um ano e quatro meses, chegou a todo vapor de Macaé-RJ. Foram recebidos pelo sorriso matreiro do Yuri, de oito meses. A partir daí, começaram as confusões. O Miguel se empolgou demais com o mar morno e desenvolveu uma bronquite daquelas, o peito chiava como mil gatos. À noite, chorava e acordava a todos. Três bebês chorando e os adultos de olheiras, sonhando com uma soneca. Além disto, os pernilongos. Nuvens destes dípteros hematófagos. A salvação eram os cortinados. Todos nós escondidinhos, emaranhados no véu e um pouco sufocados.
No final de semana, o passeio em Ambuba, a comunidade quilombola do meu genro. Os três netos na canoa, colocando as mãozinhas na água. O camarão pitú cozido no fogo entre duas pedras, a casinha de barro na beira do rio, o almoço debaixo dos pés de cacau. Na trilha, cada mãe carregando seu filho, eu carregando as sacolas, o genro carregando um cacho de bananas e um facão de um metro. A nora, moça de cidade, entrou em pânico, com medo de cobra. O pior é que tinha mesmo uma enorme, estirada no meio da trilha.
Certa noite, aconteceu um dilúvio, ficamos com medo do tsunami. A energia acabou e surgiram goteiras por todo lado, na linda cobertura de piaçava, algumas bem em cima dos colchões. Sem energia, a bomba dágua não funcionava. Depois, outro drama: a filha foi levar a nora e o Miguel para Itacaré, na estrada de terra esburacada e lamacenta. Um riacho transbordou e o carrinho Gol não passava, mesmo minha filha sendo especialista em “reconhecimento de poças” (lagoas). Voltaram decepcionadas (menos o Miguel, que não sabia de nada). Acabaram indo os dois em uma Land Rover, a nora com um pouco de medo de ser sequestrada. Para completar, não se sabe como, o Miguel “assou o bumbum” e foi berrando no avião. Ele chorava de dor; a mãe e a aeromoça, de pena.
Na noite seguinte, outro susto, à luz de velas: o Yuri, que nunca ficou doente, acordou aos prantos e não conseguia respirar. Foi levado às pressas para o hospital mais próximo, em Maraú, meia hora de viagem. Era laringite estridulosa e crise de bronquite. Mais um doentinho fazendo inalações.
No final, a filha que mora nos States, eu e Enzo fomos pegar o voo em Ilhéus. Na parada em Itacaré, à noite, ela fanhosa, catarrenta, de nariz entupido e brigando com o cortinado, soltou a frase: “não aguento mais essa Bahia!” Mas o pior foi quando chegamos no aeroporto de Guarulhos-SP: o nome dela e do filho não estavam na lista de passageiros! Descobriram que a passagem deles era para a noite anterior. Lágrimas e desespero (teve que comprar outras passagens). E lá se foram, o Enzo com sinais da mordida na careca e picadas de pernilongo. Fiquei ali pensando que ser mãe é padecer no paraíso. Ser avó também.

segunda-feira, 9 de maio de 2011

Doenças e mais doenças

      É impressionante como as pessoas adoram falar de suas doenças. Daquelas que tem, das que imaginam ter e das que estão se preparando para ter. Dor de cabeça, de dente, de ouvido, de barriga, no peito. Até dor de cotovelo. Sem falar nas competições para saber quem teve mais pedras nos rins ou na vesícula biliar.
      Só para exemplificar, dia destes estava eu caminhando feliz na piscina de um clube. Uma conhecida passou a caminhar comigo e relatou minuciosamente os seus problemas com o joelho: a operação, as dores, a fisioterapia. Depois outra, que contou seus suplícios com a coluna (as duas caminhando na água para melhorar). Por último, uma com os dramas da menopausa: vontade de chorar, nervosismo, insônia, ondas de calor (estava na piscina para refrescar). Revoltada porque ninguém tinha avisado a ela que passaria por tudo aquilo. Saí da piscina com dor de cabeça. Por pouco não sai também com dor no joelho, dor na coluna e ondas de calor. Pois a mente humana pode ser influenciada e passar a sentir o que está ouvindo ou vendo. Como na comédia “Apertem os cintos que o piloto sumiu”. Os passageiros do avião comeram peixe estragado e o médico começou a descrever, próximo ao comandante, todos os sintomas que apareceriam: coceira, cegueira, espasmos musculares, vômitos e por fim a morte. O comandante, que nem tinha comido peixe, foi ouvindo e sentindo tudo, até que caiu morto na cabine.
      Imaginem como as pessoas contam suas doenças para os médicos, nos mínimos detalhes. De acordo com um filho médico, se vão relatar uma indigestão, começam desde o convite para a festa, a festa em sí e a comilança, até chegar aos sintomas. Também há respostas vagas sobre onde e como dói: “ah, doutor, dói muito, dói tudo”. “Ah, é uma dor doída”.
      Mas de todas as descrições de doenças que já ouvi, a que mais me impressionou foi a do meu irmão. Escreveu-me em estilo trágico cômico, conforme resumo a seguir: “a minha hérnia estava com um carocinho evidente e procurei um cirurgião. Voltei para casa me arrastando, sonhei que a hérnia tinha explodido e os pedacinhos colaram na parede, com o sangue saindo de dentro de mim. Minhas tripas estão saltando para fora, pelo peritônio rompido. A hérnia pode ficar saindo e voltando, até o dia em que não volte mais e terei que ser operado com urgência. Poderá ser com o bisturi tradicional, como no tempo da Cleópatra, Roma e Marco Antônio, ou por laparoscopia. A anestesia é geral e se eu morrer ou entrar em coma, problema meu (sabia que existem seis tipos de coma, uma palavra grega, que é a mesma em todas as linguas, inclusive chinês e japonês, pode isto?). O cirugião explicou que minha hérnia pode ir descendo e se transformar em hérnia escrotal. Daí pensei que só o suicídio pode resolver isto. Acho que vou preferir o Haraquiri, aquele praticado no Japão, e cortar bem em cima desta bendita hérnia (o Haraquiri é um golpe só, do lado esquerdo para o direito, feito com a mão direita e com o punhal da família, que sempre tem mais de 1000 anos). Enquanto decido se opero ou não, posso dar um espirro mal dado e minha “Hérnia Ingnal Unilateral em Túnel” pode ir parar no saco escrotal. E eu aqui sozinho, sozinho. Vou avisar ao zelador do prédio para ir ao hospital buscar o corpo, se eles (o cirurgião e a equipe) me abotoarem”.
      Sinceramente, espero não ouvir mais relatos como este.