A cada dois dias tentarei colocar um texto novo, para manter o interesse dos meus leitores e também algumas fotos para exemplificar alguns textos. Obrigada pelo apoio.

domingo, 20 de setembro de 2015

Os velhos e os novos tempos



Sou de uma época antiga, nem tão antiga assim, mas o suficiente para  minha geração presenciar transformações incríveis. Naquela época, as geladeiras eram brancas e os telefones eram pretos, imensos e pesados. Aliás, na minha casa da infância e adolescência nunca tivemos geladeira, nem telefone, nem TV. Assisti TV pela primeira vez aos 17 anos, na casa do vizinho, em preto e branco. De diversão, apenas o rádio onde meus irmãos e eu ouvíamos a eletrizante saga do "Jerônimo, o herói do sertão". Filmes, só nas matinês de domingo, quando assistíamos seriados,  Rin-tin-tin,  Zorro, Tarzan e Mazzaropi. De luxo, uma roupa nova no dia de ano e frango caipira com angu e quiabo aos domingos. Dos brinquedos, eram especiais  os bonequinhos de argila que a gente inventava e brincava com eles até desmanchar. Dinheiro para nós, crianças, comprarmos algo diferente, somente quando meus irmãos e eu apanhávamos  jabuticaba ou manga no pé e vendíamos pelas ruas (o meu pai era o único médico na pequena cidade, a família até tinha "status", mas não tinha dinheiro). Era um tempo bom, simples, sem tanta pressa e sem tanta poluição. Não existiam garrafas Pet e nem copos descartáveis. As crianças eram criadas com fraldas de pano e não com centenas de fraldas  jogadas no lixo. Também iam à pé, de bicicleta ou de ônibus pra escola, as mães não eram motoristas. Os filhos pediam a benção antes de se deitarem, os pais eram chamados de senhor e senhora e havia muito respeito.
Mas vivemos em um mundo em transformação e tudo vai mudando, surgindo coisas e tecnologias fantásticas. Como o vidro, por exemplo. O  aprimoramento do seu processo de produção, em torno do século XIII, permitiu a invenção das lentes e dos óculos. As lentes permitiram os telescópios e os microscópios. Esses últimos permitiram as vacinas, os antibióticos, o desenvolvimento da medicina, a diminuição da mortalidade infantil. E do vidro por fim surgiu a fibra de vidro e a fibra óptica, que permitiu a internet e a comunicação global. E com isso, o telefone celular. A partir dai, nos transformamos de Homo sapiens (e não de Mulher sapiens, que isso!) em Homo connectus. Mudaram-se as profissões e os hábitos. Como a nova profissão dos vigilantes de teatro que bombardeiam os transgressores que ligam seus celulares na hora do espetáculo. Semelhantes a atiradores de elite, apontam o feixe luminoso da canetinha de raio laser no aparelho (não miram na cara) e as pessoas, envergonhadas, desligam na hora.
E agora, o importante  é "bombar" no facebook, curtir fotos e postagens, instalar aplicativos de aniversário, conhecer redes sociais, fazer cadastramento biométrico, digitar caracteres esquisitos para se logar em sistemas, atualizar softwares, aprender a usar mais um controle remoto, etc. E as senhas, meu Deus! Vivo perdida nelas. Algumas são o nome dos netos mais a data de aniversário, outras a placa do carro mais o número da casa, algumas o nome da cadelinha mais os três primeiros números do telefone. Dai misturo tudo, não sei se é cachorro mais aniversário ou cachorro mais placa. O melhor é escrever todas as senhas e guardar. Mas, onde guardar? Como lembrar onde estão guardadas? O melhor mesmo, mais seguro, é esquecer todas e ficar protegido inclusive contra nós mesmos. Mas sem senha a gente nem existe. Ai, que saudades de subir em um pé de jabuticabas, apanhar algumas bem grandes e docinhas, colocar num cesto e vender na rua. Simples assim.

 



quarta-feira, 9 de setembro de 2015

A foto do menininho


       A foto do menino morto numa praia da Turquia chocou o mundo. O pequeno Aylan Kurdi, de três anos, estava com o corpinho emborcado na areia dura, o rosto um pouco de lado, encoberto pelo vai e vem da maré.  Vestido com uma camisetinha vermelha, um pouco levantada deixando as costas descobertas, e uma bermuda azul. E de sapatinhos que não se desgarraram dos seus pés, incrível isso. Coisa mais linda e terna são os sapatinhos de crianças. Mas ali, naquela cena tão triste, naquela imagem devastadora e pungente do pequeno náufrago sírio na areia, os sapatinhos causavam espanto e incredulidade. Como as ondas do mar não arrancaram os sapatinhos? Com ele estava assim, tão plácido, tão arrumadinho? Deveria ser uma foto bonita, de uma criança na praia, duas das coisas mais fascinantes do mundo. Mas não é. Dói olhar a foto, dói olhar aquele corpinho inerte.
      Aylan morreu no mar Egeu. Estava com sua família, o pai Abdullah, a mãe Rehan e o irmão Galip de cinco anos. Fugiam da guerra civil na Síria e queriam chegar à Grécia e depois ao Canadá, mas Aylan não devia ter noção disso. No bote havia mais 19 pessoas, todas tentando a travessia de três quilômetros, organizada por traficantes e em condições precárias, para chegar à ilha grega de Kos. Lotado e no meio de ondas muito altas, o bote inflável virou. Ele, o irmão e a mãe não sabiam nadar e da família apenas o pai escapou. Ele, o pai,  que aparece nas fotos tão perdido e desolado, voltou à Síria para enterrar sua família. Nessa tragédia, morreram  mais 9 pessoas, seis delas crianças.
        Todos os dias, corpos inertes de crianças refugiadas sírias, afegãs, líbias, eritreias e sudanesas jazem nas areias do Mediterrâneo. Como explicar então que, de repente,  o menininho morto encontrado na praia passou a representar a dor de todas as crianças mortas? De todas as que têm suas vidas ceifadas por extremismos religiosos? Como passou a representar  a dor de centenas de milhares de refugiados e se transformou numa indignação mundial ? Como, se há tantas crianças brasileiras abandonadas, dormindo nas calçadas, morrendo de fome ou de bala perdida ? E as quatro crianças que morreram espremidas e sufocadas com mais 67 refugiados em uma minivan  perto de Viena? Por que não nos comovemos com esses corpos como nos comovemos com o de Aylan?
       As razões podem ser várias, conforme registrado na mídia. Talvez porque o menininho representa toda uma infância perdida. Talvez porque os bracinhos e as perninhas tinham uma fofura que doía. Ou então, porque ele estava tão arrumadinho, tão bonitinho para começar uma  nova vida. Ou simplesmente porque estava justo na linha entre o mar e a areia, onde tantas crianças fazem seus castelos de brinquedo. Ou  porque o seu corpinho foi devolvido pelo mar na mesma posição em que muitas crianças dormem. Ou mesmo porque qualquer um de nós poderia identificar no menininho os nossos filhos, os nossos netos, com aquela roupa de passeio tão comum e bonitinha (e com sapatinhos nos pés). Ou então porque seu corpinho largado na areia representa um contraste chocante com as cenas de desespero que vemos na crise dos refugiados.

         Enfim, a crueza da foto do menininho e o que tem por trás dela, o que ela realmente representa, está mudando os rumos da tragédia humanitária que se desenrola aos nossos olhos. Mas com cada uma dessas crianças mortas,  morre um pouquinho de cada um de nós. Humanidade, nós falhamos. 

segunda-feira, 7 de setembro de 2015

As árvores



Besouro nas flores de mataíba

Eu sentada debaixo de uma árvore em Buenos Aires
         O menino Zezé, de uma família pobre e numerosa, personagem principal do livro "Meu pé de laranja lima", encontrava amparo e afeto conversando com sua árvore no fundo do quintal. Um dia perguntou para o pé de laranja lima: -"Por onde você fala? " E ela respondeu: -"Árvore fala por todo canto. Pelas folhas, pelos galhos, pelas raízes. Quer ver? Encosta seu ouvido aqui no meu tronco que você escuta meu coração bater". Quando se despedia, o menino dava um abraço apertado no tronco da árvore:-"Adeus, amiga! Você é a coisa mais linda do mundo!"
      Concordo com o Zezé, as árvores são lindas. Existem para serem abraçadas e admiradas. Para trazerem beleza ao mundo e serem amigas do homem. Sábias são as pessoas que conseguem ouvir o silencioso sermão das árvores, que se deixam ficar debaixo delas, sentindo sua paz e tranquilidade e esquecendo as ansiedades  da vida. Que sabem contemplar a beleza  e a majestade de um ipê rosa florido ou de uma laranjeira de flores brancas cujo perfume nos leva para uma infância de pés descalços.
     Rubem Alves, em seu livro "O amor que acende a lua", explica que as árvores vivem para viver pois viver é bom. Com as raízes mergulhadas na terra, não fazem planos de viagem, são felizes onde estão. E as pessoas seriam mais belas e felizes se fossem como as árvores. Cita o exemplo de São Francisco que, de acordo com relatos, pregava aos peixes e às aves. Mas o autor conclui que na verdade, São Francisco deve ter ouvido a pregação das árvores. Por isso ficou tão manso, tão tranquilo, tão perto de Deus. Ele tinha a beleza das árvores. Estava reconciliado com a vida. Então os pássaros fizeram ninho nos seus galhos e os peixes comeram dos seus frutos que caíam na água...
    Gosto de árvores e de caminhar debaixo delas. Tenho uma especial, a sibipiruna que plantei em frente à minha casa. Com cachos de flores amarelas miúdas, que formam um tapete quando caem no passeio e com folhas miúdas que caem em profusão, como uma chuva fininha. É bom olhar seus galhos balançando ao vento e acompanhar suas transformações. Como o Zezé, sinto até vontade de conversar com ela. Outra árvore especial na minha vida é a mataíba, comum no cerrado e que pode se apresentar na forma de arbusto ou árvore. Durante dois anos, no meu doutorado, observei a floração de inúmeras dessas árvores e coletei  seus visitantes florais, que iam em busca do pólen e néctar de suas pequenas inflorescências brancas. Identifiquei, com auxílio de especialistas, 105 espécies de abelhas, 35 de coleópteros, 37 de dípteros e 54 de vespas que se alimentavam nesta planta e que potencialmente poderiam ser seus polinizadores. Sou grata à mataíba por ter-me dado a oportunidade de entender melhor a complexidade das interações insetos-planta e de poder, mais uma vez, maravilhar-me com a vida.

     O Zé, meu marido, também queria ter uma árvore especial. Quando criança, lá no Carmo, plantou uma moeda de 500 réis para nascer uma árvore de dinheiro. Ele ia sempre conferir, mas não vingou.