A cada dois dias tentarei colocar um texto novo, para manter o interesse dos meus leitores e também algumas fotos para exemplificar alguns textos. Obrigada pelo apoio.

terça-feira, 23 de novembro de 2021

O Príncipe, o Canarinho e o Holdini

                                                      Príncipe Holdini
                                                     Canarinho Holdini

                   

            Antes, preciso apresentar os personagens. O Príncipe é um bezerro nelorado, de dois meses, branco com mancha marrom na testa, filho da Daisy. Quando ele nasceu, foi um espanto geral, ninguém esperava. Já o Canarinho é um cavalo amarelo (como o próprio nome indica), baixinho, manso, sem raça e de pernas grossas. Sua especialidade é passar debaixo das cercas e fugir.  E o Holdini é um húngaro que migrou para os Estados Unidos e lá desenvolveu sua carreira, sendo considerado o maior mágico e ilusionista de todos os tempos (faleceu em 1926). Escapava de qualquer tipo de algema e fazia truques e acrobacias impressionantes, amarrado com correntes debaixo d´agua, do gelo, dependurado em guindastes. Revolucionou o mundo da mágica.

            A história dos três se entrelaça porque parece que existe alguma mágica no nascimento do Príncipe e nos sumiços do Canarinho. A Daisy, mãe do Príncipe, é a vaca da minha neta Lia e a única vaca da minha fazendinha. Quando ela lá chegou, sumiu. A neta foi avisada e ficou triste. Passado alguns dias, apareceu, irmanada com as vacas do vizinho. Depois, pensou-se que ela estava prenhe e a neta ficou esperando o bezerrinho. Passado alguns meses e depois de uma análise minuciosa, concluiu-se que não havia bezerro algum. A neta ficou triste novamente. Passado poucos dias do veredicto da não prenhez, desceu uma barrigona na Daisy e, uns três dias depois, nasceu um lindo bezerrinho. Com tudo isso acontecendo, a neta concluiu que o nome dele deveria ser Holdini, pois a vaca sumia e aparecia. E o bezerro, que nem existia mais, de repente nasceu. Argumentei que o pessoal da fazenda não se acostumaria com este nome e, como ela estava na dúvida entre Holdini e Príncipe, combinamos Príncipe Holdini. O nome ficou grandioso.

            Quanto ao Canarinho, também o único cavalo da fazendinha, tudo começou quando concluí que precisava de uma carroça e logicamente, de um cavalo para puxá-la. Daí surgiu um senhor com um cavalo numa carretinha. Ele tinha telefonado antes e fez uma propaganda incrível do cavalo: mansinho, forte, novo, com todos os dentes, ótimo para puxar carroça e campear gado, bom para crianças montarem, bem cuidado, etc. (só não contou que o cavalo era mestre em fugas, um escapologista como o Holdini). Pareceu-me o melhor cavalo do mundo e combinamos do senhor levá-lo para eu vê-lo. Quando eu o vi, mesmo não entendendo nada de cavalo, achei-o um pangaré e fiquei decepcionada, só gostei da cor.  O senhor abriu a boca do cavalo,  mostrou os seus dentes e exaltou tanto as suas qualidades que fiquei sem jeito e acabei comprando. Ficou faltando só a carroça. Mas, poucos dias depois, o Canarinho desapareceu. Procura daqui, procura dali, dias depois apareceu longe, num pasto verdinho, comendo capim humidícola em terras alheias. Ele deveria ter passado debaixo de uma seis cercas, segundo relato do funcionário da fazenda, para chegar onde estava. Só mágica mesmo, nem sabia que cavalo passa debaixo de cerca. Fiquei feliz demais quando apareceu. No entanto, a alegria durou pouco, pois o Canarinho desapareceu novamente. Ele estava com uma canga no pescoço (uma forquilha de madeira para evitar passar na cerca) e fugiu mesmo assim. Sem cavalo, sem carroça, sem meios de transportar e plantar as mudas de capim tangola, sem pasto...Fazenda é assim, uma roda viva, até tudo dar errado...Bem, lamúrias à parte, uns vinte dias depois da fuga, o Canarinho foi avistado atravessando o asfalto, rápido e lampeiro! O vizinho o laçou e o devolveu . Chegou  marcado com ferro em brasa com a letra  "O", ainda cicatrizando no couro, coitadinho. Qual seria o nome do larápio? Orlando? Otávio? Ovídio? Alguém o "adotou",  o marcou e ele fugiu! Talvez estivesse até amarrado com correntes...Se cavalo falasse, decerto ele teria uma boa história para contar.

            Agora ele se chama Canarinho Holdini e por enquanto está por lá, até que invente outras mágicas e acrobacias para desaparecer novamente.

 

quarta-feira, 25 de agosto de 2021

Daisy e Dama: histórias cruzadas




             Em tempos de pandemia, com tantas tristezas e problemas acontecendo, é bom escrever sobre assuntos leves e insignificantes, para diminuir o stress. Jerry Seinfeld, por exemplo, o famoso comediante, ator e escritor americano, escreveu o divertido bestseller "Melhor livro sobre nada", abordando assuntos variados como pedaços grandes de pães, sobrancelhas desiguais, bolsos de paletó de pijama, sanduiches de atum em aeroportos, coisas fritas em forma de pauzinhos, etc. Também vou escrever sobre quase nada: a história verídica  de uma vaca e de uma cadela.

          A Daisy é uma vaca nelorada branca, com cerca de dois anos, que nasceu na Fazenda Olhos D'Água, município de Buritizeiro. Pertence à minha netinha americana, a Lia, que a comprou do avô Zé (meu finado marido), depois de passar um longo tempo juntando sua mesadinha em dólares. Deu-lhe o nome de Daisy, que significa margarida, em inglês. A vaca foi marcada com o nome "LIA" e foi crescendo feliz da vida no pasto que parecia um jardim. Mas eis que, de repente, a fazenda foi vendida, juntamente com todo o gado que por lá vivia. Menos a Daisy. A Lia não vendia, não dava, não emprestava. Queria que ela desse um bezerrinho. Assim, o comprador da fazenda deixou que ela ficasse por lá, de favor. Uns dois meses depois,  o  encarregado da fazenda avisou que ela  tinha cruzado. Portanto, deveria estar  grávida, prenhe ou mojando, sei lá. De qualquer forma, um bezerrinho estava a caminho. Resolvi levá-la para a outra fazendinha, Ouro Verde, que não tinha sido vendida.  Lá se foi ela, sozinha, parecendo uma rainha,  no caminhão contratado só para  levá-la. Chegando no local, foi um duro aprendizado. Teve que ser aceita no bando das vacas selvagens do vizinho (empresto o pasto para umas oito vacas dele), procurar o seu alimento roendo frutinhos no chão e mascando folhas das árvores, beber água no rio sem cair dentro. Nada de água no cocho e capim braquiária verdinho, acabou a mordomia. Emagreceu e ficou abatida, os ossos das costelas aparecendo. Mas reagiu, foi uma sobrevivente.  Adaptou-se à vida dura sem pasto e começou a engordar. Com isso, o bezerrinho deveria estar crescendo saudável na barriga, para alegria da Lia. Mas certo dia o caseiro avisou-me que a vaca tinha sumido, não estava na fazenda. Como assim? A fazenda só tinha uma vaca, não era minha e ainda sumia? Depois de muita procura e confusão, encontraram a Daisy e as companheiras do vizinho, entranhadas no meio do mato.  Tudo bem, até dia desses, em agosto agora, quando estive na fazenda. Fui tirar fotos da Daisy para mostrar para a Lia e fiquei encabulada com a barriga dela. Aliás, com a falta de barriga. Fiz as contas: quando ela foi para a Ouro Verde, deveria estar prenhe de dois meses. Mais três meses que está lá, cinco meses de prenhez. A barriga deveria estar aparecendo. Chamei o caseiro, ele analisou e concluiu que ela não estava prenhe. Nem grávida, nem mojando.  Deus do céu, lá se foi o bezerrinho. Não tenho coragem de contar para a Lia. Para piorar, não tem nenhum boi por lá.

           Bem, agora entra em cena a Dama, a cadela perdigueira de estimação do meu filho. É lisinha, branca com cabeça e orelhas pretas, educada e amiga. Vive em um cercadinho na casa dele e sempre que vai para a fazenda de eucaliptos, que  possui em Várzea da Palma, a Dama vai junto, presa  na sua gaiolinha na parte de trás do carro. Dessa última vez, ela  ficou comigo na Ouro Verde e o filho seguiu para a outra fazenda. Penso que estranhou o local, mesmo correndo e pulando sem parar, porque á noite dava voltas na casa e gemia debaixo da minha janela. Por precaução, eu a levei  pra todo canto onde fui. Numa fazendinha perto da minha, onde fui olhar duas vacas pra comprar,  deixei-a  descer da gaiolinha e ficar correndo por ali. Mas na hora de voltar, ela tinha desaparecido. Chamamos, procuramos na estrada, o morador montou a cavalo e procurou pelos pastos. Nada. Passei a noite preocupada em como contar para a Lia que o bezerrinho não existia mais e como contar para o filho que sua cadela de estimação já era. Foi assim que a história da Daisy e da Dama se cruzaram: perdi um bezerro e uma cadela no mesmo dia. Mas no dia seguinte, inconformada, levantei-me ás seis da manhã e fui andando por perto chamando a Dama, quem sabe. Daí avistei o carro do caseiro  vindo devagarzinho pela estrada. Com a cabeça e a língua pra fora da janela, lá estava a Dama! Fiquei até com lágrimas nos olhos e penso que ela também, quando pulou estabanada em cima de mim. Havia passado a noite gemendo em volta da casa da outra fazendinha onde tinha desaparecido. O morador tentou ajudar, guardando-a  dentro de casa, mas ela é ensinada a não entrar . Tentou laçá-la para não fugir, mas ela disparava pelo pasto. No entanto, quando ela viu o carro do caseiro, correu para ele e entrou. Cachorro é inteligente mesmo. Voltou manca, sedenta e faminta, mas voltou. Fiquei feliz demais.

           Quanto ao bezerrinho, quem sabe a barriga da Daisy é murcha mesmo e ele ainda está por lá. Ou algum boi do vizinho pode pular a cerca e resolver o problema. A esperança é a última que morre.

 

                

sábado, 27 de março de 2021

Fazendo o bem



                Folheando uma revista chamada "Todos", distribuida por drogarias  para auxiliar  ONGs diversas, lí vários exemplos de pessoas realizando atos de bondade pelo Brasil afora. Por exemplo, a Cristina Harumi, veterinária em Jundiaí, passou um mês no Pantanal socorrendo os animais vítimas das recentes queimadas. A Ivanilde Bandeira, historiadora e indigenista de Porto Velho, enfrenta criminosos ambientais e já morou mais de 20 anos em uma aldeia na Floresta Amazônica. O Diego de Melo, vendedor de frutas em Colombo, PR, mora em uma casa onde, nos fundos, corre o rio Atuba. Impressionado com o volume de lixo que desce pelo rio todos os dias, construiu uma barreira flutuante com 25 galões de 50 litros e já retirou mais de seis toneladas de lixo do rio. A Maria de Fátima Santos, jardineira de Arapiraca, AL, criou um parque ecológico, onde recebe estudantes e público diverso para atividades de Educação Ambiental.  Já o Nereu Rios, de Campo Grande, criou um viveiro de mudas e  planta  as árvores em ruas, praças e margens dos rios.

                Outro exemplo é o que li na última edição da revista "Veja",  o caso do Eduardo Kobra. Ele é paulista e o mais famoso muralista brasileiro. Terminou agora de pintar uma obra de 22 m de altura e 300 m quadrados, no paredão de uma escola pública de Sorocaba, para celebrar a importância da educação. É a imagem de um menino subindo uma escada para apanhar um livro na estante. A subida simboliza o esforço pelo conhecimento e a vitória de cada degrau superado. Mas a obra gigantesca simboliza também a superação do próprio autor, que passou por vários problemas pessoais em 2020: a perda da filha recém nascida,  depressão e agravamento do seu quadro de intoxicação por tintas. Foi parar no hospital quatro vezes.  Sem poder ir para a rua , está criando os painéis no estúdio e  leiloando. Com o dinheiro que arrecada, está auxiliando os moradores de rua, os refugiados e as usinas de oxigênio em Manaus. Ainda fará doações de suas obras ao Instituto Butantan e à Fiocruz, em homenagem às campanhas de vacinação. Uma pessoa tão franzina fazendo tão grandes gestos de amor.

                Exemplos como esses, de bondade e  doação, existem por todo lado e de todo o tipo. Podem ser gestos simples, como palavras de consolo, ouvir o desabafo de alguém, contar uma piada para uma pessoa que está triste. Outros que exigem um pouco mais de esforço, como bordar enxovais para bebês necessitados, confeccionar e doar máscaras contra a Covid, fazer e entregar cestas básicas, cuidar de animais abandonados , auxiliar em creches e asilos, dar aulas de recuperação para crianças carentes, abrigar moradores de rua. Ou contribuir com doações para igrejas, Ongs, hospitais, associações, membros da família. Pessoas por toda parte doando seu trabalho,  sua arte,  seu dom, seu tempo, seu coração, seu apoio, sua compaixão, seu amor. Como isso é bonito. E em tempos de pandemia, médicos e enfermeiros, na linha de frente no combate ao coronavírus, têem doado mais que isso, têem doado suas vidas. 

                Todos estes exemplos de amor  nos fazem lembrar da  Madre Tereza de Calcutá, que também pequenina e frágil como o Eduardo Kobra, passou a vida servindo aos mais pobres dos pobres, ficando conhecida como a Santa das Sarjetas. Recebeu o Nobel da Paz em 1979 e conseguiu fundar uma congregação hoje presente em 139 países. É dela esta frase: " por vezes sentimos que aquilo que fazemos não é senão uma gota de água no oceano. Mas o oceano ficaria menor se lhe faltasse essa gota".

                Então, façamos o bem, mesmo que seja uma gota no oceano.  Existem milhares de oportunidades para isso. A enfermeira Roziele Oliveira, outro exemplo, encontrou uma forma mais profunda de cuidar das pessoas: escreve poesias para os seus pacientes da Santa Casa, em São Carlos, SP. Disse que ninguém espera ganhar uma poesia feita especificamente para ele, e quando lê e entrega para os pacientes, é algo sublime.  Eu mesma, no momento, ando escrevendo o meu quinto livro de crônicas para editar uns 500 exemplares e dar de presente. Como geralmente as crônicas são leves e divertidas, se despertarem nos leitores ao menos uma boa risada, já terá valido a pena.

 

 

 

sábado, 20 de fevereiro de 2021

A venda da fazenda Parte 3: as dificuldades

O canhãozinho enferrujado

A lagoa no meio da fazenda

Enzo procurando o boi

Lia, Pedro e Enzo no curral

          Apareceu logo um comprador interessado na fazenda Olhos Dagua. Depois de muita conversa, cada um puxando para o seu lado, tipo cabo de guerra, conseguimos fechar o contrato de compra e venda. Fiquei indignada com o fato de que na venda de fazenda é praxe entrar algo de graça. Como assim, por que isso?  Queriam o trator novo. Entrou um caminhão velho, mas bom demais. Além dos acordos, da parte técnica e das lembranças, surgiram outros problemas. Por exemplo, o que fazer com a vaca da Lia e o boi do Enzo? E com o Cookie, o perdigueiro que ninguém queria? E com os cavalos dos doze netos? E com todo o maquinário (equipamentos) da fazenda, que eu não sabia nem o nome e nem pra que servia? E isso sem falar na trabalheira e desgaste para avaliar e vender todo o gado.

                Começando pela vaca, a Daisy (Margarida, em português). A Lia, minha netinha americana de 10 anos, economizou a sua mesada e vendeu bolo e limonada  para conseguir  comprar uma novilha do Zé (dar, ele não dava, todo neto iria querer). A Dayse foi marcada com o nome "Lia" e foi crescendo forte e saudável. Quando a Lia soube que a fazenda seria vendida, entrou em desespero. Consolei-a dizendo que  levaria a Daisy para outra fazendinha.  Em janeiro agora, a Lia estava na fazenda comigo e planejamos o transporte da Daisy, dos cavalos Pocotó e Picolé e de duas vacas bonitonas pra fazerem companhia pra Daisy. E do boizão também, aquele que não entrava no caminhão, queríamos salvá-lo. Mas, se ele não entrava, como iria? No final, deu tudo errado, pois não morava ninguém na fazendinha e ficamos preocupadas de todos morrerem ou serem roubados. Assim, pedi ao senhor que comprou a fazenda para deixar a Daisy lá mesmo e ele concordou, dizendo que cuidaria bem dela. Agora a Lia está feliz, esperando os bezerros nascerem.

                Quanto ao boi do Enzo, o irmão de 12 anos da Lia, aconteceu uma tragédia. O Enzo cortou grama dos vizinhos, lá na Califórnia, varreu folha das calçadas, economizou e comprou um garrote do Zé. Também foi marcado com o nome  "Enzo" em letras grandes, então era inconfundível.  Em setembro, quando passou no brete e na balança, já pesava 349 kg. Em novembro, estava separado dos outros, em recuperação de um pé machucado. O Enzo logo disse que  queria era o dinheiro do boi (nem nome ele tinha). Em janeiro, o Enzo também estava na fazenda na época da venda. Acompanhou todos os lotes de gado sendo pesados, para ver quanto receberia pelo boi. Em dois dias, passaram todos pela balança: boi gordo, boi magro, vaca leiteira, vaca boiadeira, vaca solteira, garrotes, novilhas, etc. Mas o boi do Enzo não passou. Consternação geral. Onde estaria? Saíram todos os funcionários procurando.  Foi encontrado morto, mortinho, perto de uma cerca. Comentei com a Lia que fiquei  triste pelo Enzo. Ela respondeu que ficou triste pelo boi.

                Quanto aos cavalos, foi uma negociação extenuante. O comprador não tinha interesse por eles porque já tinha muitos. Disse também que cavalo valia muito pouco. Pra mim, valiam ouro. Eram úteis, usados na fazenda e cada um era de um neto. O Botafogo, o Alazão, o João de Barro...Senti vontade de libertá-los todos na fazendinha que restou. Mas não teria ninguém para cuidar e acabei vendendo baratinho, uma dó. Distribuí o dinheiro para os netos  e eles se sentiram consolados. Quanto ao Cookie, foi  levado para uma fazenda de eucaliptos, não sei se já se adaptou e se anda devorando todas as galinhas de lá.

                E os maquinários, meu Deus! Tive que fazer uma lista enorme com o nome e o valor de cada um, para negociar com o comprador. O encarregado da fazenda mostrou tudo e o filho médico ajudou a colocar os preços. Tenho um irmão que sempre diz que qualquer pessoa é extremamente inteligente para certas coisas e extremamente burra para outras. No que sou inteligente eu não sei, mas para maquinários de fazenda sou um desastre. Não sabia que existia plantadeira de capim, calcareador, grade de arrasto, subsolador, trado de três hastes, ensiladeira, roçadeira de arrasto, roçadeira de tomada de força, niveladora. Isso só para dar alguns exemplos. Tinha alguns bem velhos, sucatas, que só serviriam para retirar peças e não entraram na lista. Como o canhãozinho ou foguetinho (esqueci para que serve, mas não é para atirar). Enorme, enferrujado e abandonado debaixo de uma árvore. A negociação  foi complicada e sei que levei prejuízo, fazer o que. Deu vontade de "chutar o balde", como  dizem...

                E ainda tinha o gado, o mais importante. Combinar o preço da arroba do boi gordo, do magro, das vacas, dos bezerros. Pesar, somar as arrobas, multiplicar pelo preço, ver como vender vaca com bezerro, o que fazer com os bois de pés machucados. Vendemos a arroba pelo preço do dia e dali a poucos dias estava muito mais caro...Sorte do comprador.

                Enfim, lá se foi a Fazenda Olhos D'Água. Ficou aquela sensação de não ter se despedido direito de uma coisa que você não tem mais e que queria ter.  Mas quando uma porta se fecha, outras se abrem. Se Deus me ajudar, vou transformar a fazendinha que restou, a Ouro Verde, em um paraíso ecológico banhado pelo rio Jequitaí. Lá não tem nada, só uma cisterna desbarrancada e uma casa que caiu. Precisa levar energia e água, construir uma casinha branca de janelas azuis, limpar o pasto. Quando tudo estiver pronto, levo a Daisy e umas outras vaquinhas pra fazer companhia pra ela. E um boi de raça, gabiru não.

                Depois conto como foi.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

A venda da fazenda Parte 2: as lembranças





 

                Com a decisão tomada de vender a fazenda Olhos Dágua, seguiram-se os trâmites normais: avaliação, contato com corretores, divulgação, documentos,  impostos , etc.  A essa altura, o Zé já tinha falecido e na partilha, a fazenda tinha ficado para mim, pois nenhum dos seis filhos teria condições de cuidar (e nem eu). Essa parte técnica foi trabalhosa, mas não tão difícil quanto a parte sentimental.

                Ficou aquele sentimento de nostalgia pelos bons momentos que toda a família passou durante os dez anos que sempre íamos na fazenda, e que não voltariam mais . As lembranças do Zé: sentadinho na varanda, olhando feliz a chuva que vinha chegando ao longe.  No meio da pastagem, que parecia um jardim, olhando orgulhoso os bois gordos e sadios, sem nenhum carrapato. No curral, batendo um papo sem pressa, com os funcionários. Ou bebendo  leite quente e espumante com conhaque, tirado na hora das tetas da vaca. Na oficina, orientando sobre o conserto dos tratores, que estragavam sem parar.  Na mesa grande da varanda, cercado pelos filhos e netos, saboreando a galinha caipira que tanto gostava. Ou então o miolo de porco em cima do arroz quentinho. Uma vez ele também comeu omelete de aleluia. Deu uma invasão desses insetos na fazenda, eram atraídos pela chama do fogão e entravam na comida como ingrediente. As lembranças dos filhos: o dia em que o Luiz Cláudio decolou da fazenda em seu paramotor e sobrevoou a Cachoeira do Manteiga. Os habitantes olhavam curiosos quando o vento mudou de direção e ele fez um pouso forçado. Ficou na história da cidadezinha. As competições de tiro ao alvo e as caçadas com espingarda de chumbinho. As pescarias com uma parafernália de fazer inveja a qualquer pescador, mas eles não pescavam nada. As lembranças dos netos e netas: os passeios a cavalo, os piqueniques debaixo das gameleiras gigantes; os netos empoleirados no curral olhando o gado, nadando na prainha do rio Paracatu, brincando na casinha de boneca e na piscina de plástico debaixo do pé de jaboticaba.  A Maíra, a netinha de 9 anos que queria um porquinho de estimação. Mas ele fugiu do tambor, onde ela lhe passava a mão  para domesticá-lo, e saiu numa carreira desenfreada pelo pasto afora. Foram muitas lágrimas de desespero, sem saber se ele saberia voltar para o chiqueiro. No dia seguinte, fomos as duas contar os porquinhos. Tinha doze como antes, ele estava lá sim, com os irmãozinhos, todos iguais! A Vitória,  filha do encarregado, amiga inseparável das netas. O Moisés, que caia em prantos quando ia embora, queria morar na fazenda...O Pedro, que um dia caiu do cavalo, ficou muito assustado e passou um bom tempo sem montar novamente. A Lia, que lá nos States fez um curso sobre como cuidar de cavalos. Fez trança em cascata na crina do Algodão e ele ficou todo garboso. As lembranças do Cookie, o cachorro perdigueiro de estimação que estraçalhou todas as galinhas dángola da fazenda. Da Dama, a cachorra da cidade que sempre ia com o meu filho, dentro da sua gaiolinha. Certa vez ela desapareceu e passamos  parte da noite no pasto gritando por ela. Apareceu no outro dia, esfomeada. E muitas outras lembranças: o céu tão estrelado, o pôr do sol tão lindo, as flamboyans floridas, o queijo fresco e o leite gordo, os pés de mangas suculentas, os pirilampos que certa vez apareceram na casa à noite, ficando centenas de luzinhas acesas por todo canto (mas também aparecia escorpião, minha filha foi ferroada).  A ternura e o cuidado das vacas cuidando dos bezerrinhos novos e o encanto de cada nascimento.  A boiada vigorosa trotando na frente da casa e levantando poeira. A majestade e a placidez do rio São Francisco, o velho Chico. As aventuras a cada travessia na balsa...

                 Pensando em tudo isso, lembrei-me daquela história de um amigo do poeta Olavo Bilac. Ele queria vender um sítio que lhe dava muito trabalho e despesas.  Pediu então ao poeta para redigir o anúncio da venda. Bilac escreveu: "vende-se encantadora propriedade onde cantam os pássaros ao amanhecer. É cortada por cristalinas e refrescantes águas de um ribeirão. A casa, banhada pelo sol nascente, oferece a sombra tranquila das tardes na varanda". Meses depois, o poeta encontrou-se com o amigo e perguntou-lhe se ele tinha vendido o sítio. O amigo respondeu que nem tinha pensado mais nisso, depois que viu a maravilha que ele tinha.

                Deu vontade de desistir da venda da fazenda também. Mas sem o Zé, não teria mais sentido continuar. Melhor pensar como naquela poesia: "que esta minha vontade de ir embora se transforme na calma e na paz que eu mereço...porque metade de mim é partida, mas a outra metade é saudade."

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

                

A venda da fazenda Parte 1: a aprendizagem



                Com o falecimento do Zé, meu marido,  resolvi vender a fazenda Olhos Dágua, no municipio de Buritizeiro e nas margens do rio São Francisco. A venda não daria apenas uma crônica, mas um livro inteiro, e grosso.

                Tudo começou no ano passado, quando, com o Zé doente, tive que assumir e aprender muita coisa. Algumas espantosas. Por exemplo, na hora de telefonar para os frigoríficos para vender os bois magníficos, que não sabiam o destino que os esperava, o Zé me orientava  para perguntar se eles contavam os dentes.  Porque se o boi tivesse mais de quatro dentes, pagavam menos!  Daí eu argumentava que era lógico que todo boi tem mais de quatro dentes. Ele ficava indignado com minha ignorância, eu perguntava ao frigorífico, vendia para aquele que não contava e até hoje não entendi. Na hora de conferir o tal romaneio de abate, aprendi  que uma arroba equivale a 15 quilos e que pagam só a metade do peso do boi, a outra metade é carcaça: chifre, rabo, couro, pés. Não valem nada (mas para o boi são essenciais). Também  aprendi, na labuta diária, que existe boi gabirú e vaca boiadeira. Eu ficava no curral de 7h da manhã às 18h, anotando o peso das várias categorias, enquanto a boiada passava pelo brete e pela balança, para fazer a apartação do rebanho ou para vacinar. Havia a turma dos bois acima de 500 kg prontos para o abate; bois entre 350 e 500 kg para engordar mais um pouco; machos entre um e dois anos; bezerros de apartação;  vacas de leite e  vacas boiadeiras com seus bezerros; vacas solteiras; novilhas e novilhotas. Passavam  muitos bois bonitos, de carcaça  comprida, brancos, com orelhas curtas. Eram os nelorados, os mais nobres. Entre eles, os gabirús, de carcaça menor, de testa, orelhas e chifres grandes, pêlo mais arrepiado e geralmente de cor. Engordam pouco e são vendidos a preço de vaca. Ou seja, são a ralé do gado e desprezados pelos criadores. Mas são bons de pular a cerca e cruzar com as vacas. Daí vão nascendo bezerros gabirús e isso atrapalha o rebanho todo. Assim, na hora da pesagem e apartação, eles já eram separados para serem castrados, coitados. Entre os bois nelorados, fiquei fã de um. Gordo, com 600 kg, bonitão, de couro lisinho e esperto. Os empregados da fazenda contaram que ele, por duas vezes, estava na turma dos bois a serem levados pro frigorífico. Mas não havia santo que fizesse o boi subir no caminhão. Empurravam, puxavam com cordas, espetavam com varas e nada. Ele não ia. Claro, sabia que ia morrer. Aí, tinham que colocar outro boi no lugar e ele continuava por ali, pastando e engordando.

                 Quanto às vacas boiadeiras,  são as ruins de leite, mas isso passa a ser uma vantagem para elas. São usadas apenas pra ter bezerro e vivem livres, leves e soltas no pasto, com o bezerro mamando todo o leite. Já as vacas leiteiras, embora tenham que dividir o seu leite entre o homem e o bezerro, são mais personalizadas, todas têm nome: conheci a Neguinha, a Esperança, a Seda Branca, a Caretinha, a Fantasia, a Cocada e muitas outras. A Chumbada, por exemplo, tinha 15 anos e já tinha dado à luz (ou parido?)oito bezerros. Era boa de cria.       

                Outra coisa que aprendi, quando eu e meu filho tivemos que andar pela fazenda, com o encarregado, para fazer o planejamento para revitalizar a pastagem: tem muito tipo de capim, uma loucura. Andropogon, braquiária, massai, mombaça, colonião, grama tipi, capim umidícola. Cada qual com suas características e suas necessidades. O pasto necessita ser dividido em piquetes, não pode ter dois tipos de capim juntos porque o gado come o que gosta e pisoteia o outro. Tem muitas pragas também, como a tiririca, que o gado come quando falta capim. E existe capim pra época de sêca e capim pra época das águas. É preciso sempre jogar defensivo agrícola para matar as pragas e há específico para folhas largas. Todo ano é preciso adubar o pasto : jogar calcário, depois gesso agrícola, depois gradear, semear, passar a niveladora e rezar pra chover! Depois que nasce o capim, joga-se outros nutrientes, como fosfato, KCL, nitrogênio, ureia. Também não pode rezar muito para chover, porque pode dar enchente no São Francisco , a água invade o pasto e compromete todo o banco de sementes, como já aconteceu antes. Cruzes, difícil demais alimentar bois e vacas! Sem falar no tanto de sal e milho que é preciso comprar. Na verdade, eu nem precisaria aprender tudo isso, mas como eu é que teria que comprar as sementes e pagar todo e qualquer gasto, não poderia ir tocando a fazenda assim  às cegas. Sempre ouvi o Zé dizer que " o olho do dono é que engorda o boi" .

                O problema maior é que eu não queria engordar boi algum. Se fosse para criar bezerrinhos, e vender bezerros, até que tudo bem. Mas mandar caminhões cheios de bois nobres para o matadouro, era de cortar o coração. Pior, tenho uma filha zen que é vegetariana, faz meditação e yoga. Quando o caminhão ia sair com os bois, ela conversava com eles, rezava e pedia perdão.  Ainda me falava que o sangue dos bois sacrificados voltaria para mim, ou seja, algum dia eu seria culpada por tanto sangue derramado.

                Com tantas coisas complexas, junto com o sentimento de culpa, resolvi seguir o conselho do filho e pedi a orientação de uma equipe de especialistas em manejo de fazendas. Vieram de Belo Horizonte e falaram o dia todo. Olharam a fazenda, viram o gado, os maquinários, conversaram com os funcionários, analisaram todos os dados que eu tinha anotado, sobre a contabilidade da fazenda e sobre o rebanho. Ficaram impressionados com a organização e fiquei orgulhosa. Concluíram  que havia muitas categorias de gado e que seria preciso definir um modelo, pois, como estava, o manejo era complicado (ah, isso eu já sabia!). Talvez o melhor fosse comprar bezerros de 6 arrobas e vender com 13 arrobas para confinamento. Ou seja, os garrotes ficariam presos, engordando, até serem encaminhados para a morte. Nunca que eu faria isso. Outra solução seria criar vacas e vender bezerros. Gostei. Mas quando soube das dificuldades com estação de monta, vacas que nunca dão cria, toque para saber se a vaca está grávida, parto, desmame com bezerros berrando, etc e tal, desisti. Sobrou vender o gado todo e arrendar a fazenda. Mas o Zé sempre dizia que arrendar acabaria com a fazenda. Para agricultura, até que seria possível, mas as terras não eram apropriadas para colocar pivô. Sendo assim, conversamos em família e optamos pela venda.

                Só que eu não sabia que vender era mais difícil que tocar a fazenda. Continuarei a epopeia nos próximos capítulos.