A cada dois dias tentarei colocar um texto novo, para manter o interesse dos meus leitores e também algumas fotos para exemplificar alguns textos. Obrigada pelo apoio.

sábado, 6 de novembro de 2010

A lacraia

Monastério Budista

            Em suas andanças pelo mundo, minha filha foi parar no sul da Tailândia, no monastério budista Suanmok, situado em uma floresta densa, com um lago de águas quentes. A última etapa da sua viagem para chegar até lá foi na garupa de uma motoquinha. Foi fazer um retiro de dez dias de meditação em silêncio, chamado Vitassana. Era mais ao menos assim: os alunos levantavam às 4:30h da madrugada e deitavam às 21h; mulheres de um lado do monastério e homens do outro, cada um no seu quartinho separado. Só havia duas refeições: sopa de arroz no café da manhã e almoço com legumes e arroz (nada de carne, é pecado). Depois, à noite, um chazinho sem nada, nem mesmo uma torrada. Durante o dia, o turno de yoga, meditação sentada, meditação em pé, meditação de olhos fechados, meditação caminhando. Conversar um com o outro, nem pensar. Nem mesmo comunicação com os olhos (as mulheres são mestras nisto, falam tudo com os olhos, possuem mais de cem olhares diferentes). Silêncio total, paz e amor.
            Como se sabe, para o Budismo, os animais são sagrados (a vaca principalmente). Ninguém pode sair matando a bicharada. E no local do retiro, pior ainda: era proibido matar até inseto. Barata, pernilongo, piolho, pulga: todos sagrados.
            Acontece que, num belo dia, estava minha filha em seu quartinho bem simples, depois de um dia extenuante, prontinha para dormir. Cama de cimento (sem colchão, acreditem ou não) e travesseiro de madeira. Chão de cimento liso, a mochila em um canto. De repente, ela viu uma enorme lacraia correndo agilmente pelo quarto, com seus 21 pares de pernas. Movimentando a cabeça pra lá e pra cá. As duas antenas tateando o ambiente, dois olhos e duas mandíbulas que se abriam e fechavam. Corpo vermiforme e achatado, marrom. Primeiro par de pernas transformado em acúleos para introduzir peçonha na presa e capaz de picada dolorosa. Provavelmente do gênero Scolopendra, que são lacraias (ou miriápodes) de cerca de dez centímetros, com larga distribuição geográfica e capazes de matar até pequenos camundongos. Logicamente, minha filha não sabia de tantas características biológicas do monstro artrópode. Só sabia que estava vivendo um filme de terror. Não podia gritar e pedir socorro (era proibido falar, quanto mais gritar); não podia matar o artrópode porque ele era sagrado e não podia dormir com ele no quarto. Imaginou-se dormindo e a lacraia passeando no seu rosto com os 21 pares de pernas que terminavam em garras. Imaginou-se também levando uma picada dolorosa , com os acúleos injetando peçonha em sua pele macia. Corajosamente, tomou uma decisão: pegou o chinelo e tum, tum, matou a malvada. Depois, o drama: onde jogar o cadáver, a prova do crime? Jogou pela janelinha, deitou no travesseiro de madeira e dormiu com dor de consciência.
            No dia seguinte, reboliço geral na varanda debaixo de sua janela. A lacraia, esborrachada, caiu lá e a moça da limpeza encontrou o cadáver. Todos os alunos do curso olhando consternados, gesticulando (gesticular podia) sobre quem poderia ter feito a malvadeza. Num ato heróico, ela apontou o dedão para o peito e confessou o crime. Sentiu-se a mais reles das criaturas e pensou que seria expulsa do monastério. Não foi, mas jamais se esqueceu da lacraia.

Karine e amigas na Tailândia

Um comentário:

  1. Tia, mais uma vez, parabéns pelos seus contos... são hilários e bastante educativos. O detalhamento da lacraia fez a minha imaginação voar alto, praticamente desenhei-a em minha mente. Show de bola o seu blog. Beijos.

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