A cada dois dias tentarei colocar um texto novo, para manter o interesse dos meus leitores e também algumas fotos para exemplificar alguns textos. Obrigada pelo apoio.

quinta-feira, 20 de março de 2025

Vamos virar torresmo?


 

Na mídia, notícias sobre calor extremo são constantes. Por exemplo: 2024 foi o ano mais quente já registrado; o Rio Grande do Sul, recentemente, registrou temperaturas extremamente altas, acima de 40 °C; na América do Sul, o número de mortes relacionadas ao calor aumentou 160% entre 2018-2022; os efeitos na saúde são marcantes: entre 2000 e 2019, cerca de 489.000 mortes relacionadas ao calor ocorreram a cada ano no mundo. E por aí vai.

Esse é um assunto extremamente sério e preocupante. No entanto, José Simão, colunista da Folha, consegue abordá-lo de maneira divertida. No artigo “70  °C? Vou virar torresmo!” escreveu que mora em um país tropical, mas não tem uma nega chamada Tereza. Que em fevereiro avisaram que a sensação térmica poderia chegar a 70 °C, então o mês deveria se chamar “fervereiro” . E que grau já era,  vale agora é a sensação térmica, aquela sensação de quero ficar pelado. Conta que o marido perguntou pra mulher: -“Se eu dormir no terraço pelado o que os vizinhos vão dizer?”  A mulher respondeu: -“Que eu casei com você por dinheiro”. Rarará! Comenta que a nossa pele vai fritar, virar torresmo e vamos todos morrer de overdose de suor. E o Brasil vai derreter e virar uma poça de suor, a chamada frente frita. A gente acorda pra torrar! O calor é tanto que o poste da rua de um amigo dele  pegou fogo sozinho. E ele também pegou fogo sozinho! Fala que não são as calotas polares que estão derretendo, são as calotas do seu carro! E conta de um cartaz onde estava escrito: “ Faz merda não, hein! Sensação de 60 °C na praia, imagina na cadeia!” Deseja até mesmo ir para o inferno, onde é mais fresquinho. Argumenta que o traje oficial do Brasil, daqui pra frente, será bermudão e chinelo! Conta que o presídio da Papuda, onde estão ensaiando as marchinhas “Unidos da Papuda” e “Me dá um golpe aí”, já é chamada de Nova Dubai: muito quente e cheia de milionários! Conclui que o bom mesmo é dormir na gôndola de congelados do Pão de Açúcar, de conchinha com um chester!

Além do mundo todo, há pessoas derretendo, mas não pelo calor. Li esta noticia : “O Lula está derretendo, reflexo da indignação das pessoas. Os partidos de centro já começaram a pular fora”. Ah, e sobre o Lula, José Simão escreveu : “Lula diz para o povo parar de comprar o que está caro, e supermercados dão férias coletivas. Rarará! E o preço do ovo? O problema do Lula não é o mercado, é o supermercado!”

Bem, brincadeiras à parte, o problema do aquecimento global é muito sério. Cada qual precisa fazer a sua parte, com ações dentro da possibilidade de cada um.  Por exemplo, nas cidades, as ilhas de calor urbano com pouca vegetação e dominadas por asfalto, retêm o calor. Que tal plantar uma árvore na calçada e cuidar dela com carinho? Em áreas de pobreza e habitação precária, as escolas geralmente não têm ar condicionado, o que torna as crianças mais vulneráveis aos efeitos do calor. Que tal doar um ar condicionado para uma escola carente?

 Enfim, mitigar os efeitos do calor extremo exigem ações globais, locais e individuais. Todos nós devemos fazer a nossa parte. Caso contrário, vamos mesmo virar torresmo, daqueles bem crocantes e moreninhos.

terça-feira, 4 de março de 2025

Uma viagem de navio


                                            

            Em janeiro, fui com um grande grupo, com camiseta azul escrita "Mineiros a Bordo", fazer um cruzeiro, saindo de Santos, no navio Costa Diadema, de bandeira italiana. Um gigante dos mares, com 133.000 toneladas, 305 m de comprimento e capacidade para 6.200 pessoas. Com muitas diversões e confusões; passageiros de todas as idades: ricos, pobres, remediados, brancos, negros, amarelos pelo enjoo do navio; argentinos, mineiros, gaúchos, curitibanos; tripulantes de várias nacionalidades. Tudo isso emoldurado por um mar sem fim e um céu azul a perder no horizonte.

          Foram sete dias singrando o mar. O que a gente mais fazia era comer e se perder. O principal ponto de comilança era no Restaurante Buffet, que ficava aberto 24h, sem descanso. Começava às 5 h com o café da manhã para os madrugadores, depois para os normais e terminava às 11h para quem adorava repousar.  Em seguida, almoço, café da tarde, jantar, lanche da noite até 5h e tinha gente que não perdia nada. Salmão, camarão, pizza, sobremesas, à vontade.  Podia-se também optar por restaurantes à la carte e pedir pratos sofisticados. Como o Fiorentino, onde o melhor não era nem a refeição nem a conversa animada, mas sim o espetáculo dos garçons e cozinheiros, toda noite. Eles dançavam entre as mesas, batendo os pés e as mãos, ao som da música Jerusalém, com seus aventais pretos. A plateia vibrava, cantava junto e rodopiava os guardanapos brancos. Alguns garçons eram bons dançarinos e esbanjavam ritmo e gingado (decerto foram escolhidos no show do navio, "Gente di Mare- o espetáculo da tripulação", no qual cada um revelava seu talento). Além dos restaurantes, existiam vários bares especiais, onde algumas pessoas exageravam nas doses e depois se arrependiam amargamente. E quem não quisesse sair do quarto, poderia ligar e pedir itens como "polpettine di granchio alla Benedict", mesmo sem saber o que era. Afinal, havia no navio 203 cozinheiros e 284 garçons, várias cozinhas e uma padaria que fazia pão, foccacia e pizza três vezes ao dia, gastando 3000 kg de farinha de trigo da Itália. Gastava-se diariamente 20.000 litros de água mineral, 3.000 de vinho, 5.000 de leite, 16.200 kg de vegetais, 8.700 kg de carne bovina (mas não eram das minhas vaquinhas!), 650 kg de manteiga, 7.300 kg de peixe. E 33.120 ovos por dia! Não inventei esses números não, aprendi com o palestrante Marcílio, na palestra "O navio nos bastidores". Ele explicou, entre outros, que toda a água filtrada é comprada e a água do mar é tratada para vários usos, como na lavagem de roupas (são 16.000 toalhas por dia). Depois é tratada novamente e jogada de volta ao mar, junto com os restos de comida que antes passam por biodigestor e tratamento. E em cada porto, os materiais recicláveis são descartados nos locais corretos.

         Quanto às pessoas ficarem perdidas, acontecia porque eram 1862 cabines, 18 conveses, corredores a perder de vista com vários “entroncamentos”, muitos elevadores na popa, no meio e na proa. A gente precisava marcar um rumo, decorar e tomar sempre o mesmo caminho. Mesmo assim, nunca se sabia se virava à esquerda ou à direita. Além disso, não havia internet, só se comprasse um pacote caríssimo, então não havia como combinar onde se encontrar com outros. Um dia o meu neto de doze anos, que estava comigo na cabine 6230, chegou esbaforido, suado, com palpitação e disse apavorado: “Vovó, eu me perdi e vim lá do zero!” Era assim. 

        Além de comer e se perder, havia muitas atrações, para qualquer idade. Piscinas, torneio de ping-pong, gincanas, brincadeiras e desafios, cassino, discotecas, escola de dança, bingo, ginástica, caminhada, mercadinho da Black Friday, foto com o comandante. Palestras e seminários sobre saúde, como celulite, olheiras e inchaço ao redor dos olhos. Era só escolher. Entre um e outro, comer e se perder. E cansar também. Tinha uma no grupo dos mineiros que cuidava da sua mãezinha. Era o dia todo: “Mãezinha, vamos pro café.” “Mãezinha, vamos pra ginástica”. “Mãezinha, vamos pro teatro”. A mãezinha não tinha tempo nem para uma soneca, ficou bem cansada!

        Á noite, o “point” era o enorme teatro, com três níveis e shows diários. Alguns fantásticos, como o “Seasons of love “, com rodopios e evoluções de um par de acrobatas com impressionante flexibilidade, força e beleza. O “Kings and Quens”, com uma banda interpretando os grandes clássicos dos reis e rainhas do pop e do rock. O “Led Tron Dance”, com três bailarinos cujos corpos se apagavam e se acendiam e a gente não entendia como. Mas o apogeu foi a escolha do ganhador do karaokê   “The Voice of the Sea”. Com jurados, votação do público e escolha da vencedora, que cantou “Evidências do Amor” e ganhou muitos aplausos. Fora do teatro, aconteceu o “Grande baile dos oficiais” e “A noite do branco”, bem concorridos. O evento mais criativo, pra mim, foi a festa “A noite do semáforo”, onde a cor da roupa dizia tudo: verde, disponível; amarelo; estou pensando; vermelho, já estou ocupado. Um dos netos ficou afobado procurando uma camisa verde. Não encontrou, mas não fez diferença: na hora da festa já estava no décimo sono, exausto de correr pelos corredores.

            Enfim, foram muitas as emoções. Coroadas pela contemplação do nascer e do pôr do sol, do ponto mais alto do navio. A imensidão do mar azul, a beleza das cores, o rastro do navio sulcando as águas, o encontro do céu com o mar, a gratidão pelo momento e pela oportunidade de ali estar. “O espírito de Deus pairava sobre as águas”. Como escreveu Adélia Prado, no livro “O coração disparado”: “O mar existindo com este navio imenso, coitado de quem não viu e só soube de mar de rosas e rio de enchente parecendo um mar.  Tão diverso de anzolinho de piaba e água doce, esta água estendendo-se até dormir de cansaço e virar país estrangeiro. Coitados de pai e mãe que morreram sem ver”.

 



 

Como perder um navio


                                       

 

            O escritor paraibano, Ariano Suassuna, em um vídeo divertido, explica que tudo o que é bom de passar, é ruim de contar . Por exemplo, se você for contar para um amigo como a vida está boa neste ano: no dia primeiro de janeiro, foi tudo bem; no dia 2, foi ótimo; no dia 3, foi bom também. O amigo só consegue escutar até o dia 4. Por outro lado, ele completa que tudo o que é ruim de passar, é bom de contar. Por isso, vou contar uma coisa ruim, que aconteceu na minha recente viagem em um  navio de cruzeiro.     

            Tudo começou quando, com um grande grupo que iria comemorar a bordo o aniversário de uma amiga , embarcamos em Santos no navio Costa Diadema, para um cruzeiro de sete dias.  Seguimos para Itajaí, Montevidéu e Buenos Aires, onde os passageiros podiam descer e retornar em determinados horários. Cada passageiro possuía um cartão  magnético com vários dados. Sem ele, a gente não era ninguém. Mesmo com ele, a gente era insignificante, pois havia 4.250 passageiros a bordo e 1.253 tripulantes. Era cada um por si e Deus por todos. Quando chegávamos em algum porto, a multidão ia descendo dos vários conveses do navio (tinha 15 conveses acima do mar, três abaixo e 1.862 cabines de passageiros, imaginem!). Parecia uma boiada quando a porteira abria.  Todos passavam por funcionários na porta de saída,  que registravam o cartão pra saber quem tinha deixado o navio.

            Dentro desse contexto (de você desaparecer e nem fazer diferença), descemos em Itajaí e Montevidéu e o passeio foi muito bom. Então, como diria Ariano Suassuna, é ruim de contar. O drama aconteceu em Buenos Aires. Eu comprei uma excursão organizada pelo navio. O ônibus da excursão saiu ás 9 h e retornou às 14:30h. Visitamos a praça da Casa Rosada, o bairro Caminito e a Calle Florida. O horário de regresso ao navio era até às 18:30h, então resolvi ficar com outros grupos para conhecer diferentes locais. Assim,  perguntei à guia da excursão, que falava português, qual o nome do porto para o qual eu deveria retornar.  Ela disse, com todas as letras: "Benito Martinez Terminal Fluvial" e anotei no meu caderninho. Fomos um grupo maior para o lindo bairro Palermo. Depois nos dispersamos e fiquei com o neto Yuri, de 16 anos e a neta Yara , de 14 , quando então fomos visitar o Jardim Botânico, um lugar de paz e beleza, com árvores frondosas. Antes de irmos para lá, os netos almoçaram chorizo, frango com batatas e duas limonadas, por $59.840,00 pesos argentinos (um real vale 200 pesos e um dólar, 1.100 pesos). Ou seja, dois pratos simples por R$300,00, tudo está caríssimo na Argentina.

            Bem, continuando, vi que o meu celular estava quase descarregado ( mas estava 100% quando deixei o navio) e às 16: 45 comecei a procurar Uber para regressar ao  porto. Colocava o nome informado pela guia e não aparecia aquele porto. Não havia tempo para confirmar com ninguém, 2% de bateria. Chamei mesmo assim,  confiando que o motorista saberia onde era aquele porto tão importante , no qual desembarcavam centenas de pessoas diariamente. Mostrei o nome do porto escrito no caderninho, o meu cartão do cruzeiro, expliquei tudo.  Ele disse: " Sé dónde es, sé dónde es" e lá fomos nós. Tentei carregar meu celular para confirmar com alguém o endereço, usando o cabo do Uber, mas estava quebrado. Yara dormindo o sono dos justos. Yuri grudado no celular, mesmo sem internet, sem saber se estava na Terra ou em Marte. E olha que ele tinha ido á pé do navio para o bairro Palermo, com o meu filho. Mesmo depois de quarenta e cinco minutos no carro, ele não desconfiou que o caminho estava errado! Eu falei várias vezes para o  motorista: - " Por favor, el camino está equivocado, está muy  lejos,  vamos a perder el crucero". Mas ele não se importava, não parava e chegamos em outra cidade, em Tigre. Insisti que não era aquele porto, pedi para ele aguardar eu confirmar e voltarmos com ele. Disse que não iria voltar, que morava em Tigre e nos abandonou por lá, às 17:50 h. Saí pedindo informações pelo  porto e cada minuto era importante. Seria uma hora de lancha até o navio. Ou então pegar o próximo trem. Não havia táxi por lá. Não tinha bateria no celular pra chamar Uber. Iria ficar em um país estranho com dois menores, sem passaportes (eles ficam retidos no navio), com uma nota de cem dólares e o cartão do banco na bolsa. Como Deus é grande, encontrei uma lojinha que ajudava turistas. Relatei meu drama, bebi uma água, encontraram o nome correto do porto, chamaram um táxi e  avisaram que não chegaríamos a tempo. O motorista, um senhor velhinho e desdentado, saiu a toda velocidade, e não trombamos e nem morremos pelo caminho (a esta altura, os netos estavam bem despertos).  Carreguei o celular no táxi e avisei os dois filhos que era quase certo que perderíamos o navio. Conseguiram que fosse colocado um último ônibus, do porto ao navio, às 18: 40 h, mas tínhamos que chegar até este horário. Chegamos às 18:37 h, aleluia!  Graças ao velhinho, que deveria ser piloto de corrida. O táxi era 35 dólares, eu iria dar 50 , mas ele não tinha troco pra minha única nota de 100 dólares.  Não possuia pix  nem conta em banco. Eu não tinha pesos. O navio quase saindo. Entreguei a nota de 100, saímos correndo e ele ficou olhando com um sorriso incrédulo.

            Enfim, valeu a experiência e ficou a receita para perder um cruzeiro: 1-não saber o nome do porto; 2-celular descarregado; 3-netos adolescentes no mundo da Lua; 4-motorista de Uber sem ética e sem educação.

            Passado o susto, registrei uma reclamação pelo fato da guia do próprio navio não saber o nome do porto. E por não existir nenhuma orientação do que fazer no caso de perder o navio.  Como pedido de desculpas, ofereceram para nós quatro da cabine um jantar delicioso, com lagosta, carneiro, pato e salmão. E com um cozinheiro filipino que preparava os alimentos na nossa frente, cantando em inglês e fazendo acrobacias com  facas e ovos.  

            No próximo texto, contarei como é singrar os mares olhando o pôr e o nascer do sol. Que o Ariano Suassuna me perdoe , mas  tentarei prender a atenção dos leitores até o final, mesmo contando coisas boas. 

 



 

sexta-feira, 13 de dezembro de 2024

Jesus, Maria e José

 


                                   

            Li recentemente o livro "O Evangelho secreto da Virgem Maria", de autoria de Santiago Martín, um sacerdote católico espanhol. Ele , um aficionado por documentos antigos, pesquisou textos apócrifos sobre Maria. Esses escritos, de natureza religiosa mas não incluídos no cânone oficial das escrituras sagradas, tratam da vida de Maria, sua maternidade e seu papel na história cristã. Baseado em seus estudos, o autor escreveu o livro na primeira pessoa, como se fosse Maria contando sua vida para João, o  discípulo amado que ficou cuidando de Maria após a morte e ressureição de Jesus.

            Há trechos muito belos , que ajudam a melhor conhecer e amar Maria. Por exemplo, no capítulo "Tinha quinze anos", quando da anunciação do anjo Gabriel, Maria contou para João : "Estava no meu pequeno quarto, quando ele se encheu de luz. Estava ajoelhada , com minha roupa modesta presa acima do joelho para não gastá-la, quando ele apareceu. Eu me assustei sim, mas era um medo que não era medo. Ele estava ali, belo e luzidio, doce e cheio de paz, e era grande a minha sintonia entre sua alma e minha tranquilidade. Quando falou, assustei-me , não porque sua voz era feia, mas porque o que ele falou me deixou perplexa".

            Em outro capítulo,  intitulado "O dia seguinte", Maria conta para João que quase não dormiu aquela noite. Sabia que algo estava dentro dela , algo novo, vivo, maravillhoso. Porém, o que era? Ou melhor, quem era? Que tipo de Messias era aquele que nasceria numa aldeia perdida da Galiléia? Quem escolheria por mãe uma pobre moça, filha de um artesão? Afirma que não sabia como ocorreu, apenas aceitava que para Deus nada era impossível. Mas como poderia um ser humano ser filho de Deus? E o que diria José, a quem estava prometida em casamento? E se fosse apedrejada por adultério, como era o costume da época?"

 Conta que foi acalmada ao entender que sua força estava na confiança, no poder e no amor de Deus. Sentiu sua presença e adormeceu em seus braços.  De manhã, sua mãe, Ana, a acordou e ela se pôs a chorar. Disse-lhe: -"Vou ser mãe". Choraram abraçadas por um longo tempo.  Quando Maria contou para Ana sobre a visita do anjo Gabriel, essa disse-lhe: -"Acredito em ti, filha, pois o que contas é incrível demais para ser inventado e porque jamais tive motivos para duvidar de ti ". E quando Ana contou para Joaquim, o pai de Maria, ele ouviu tudo, sentado em um banquinho, nervoso e angustiado. Disse que a filha era a alegria de sua alma, mas sabia , desde seu nascimento, que ela pertencia a Deus.  Ajoelharam-se perto de Maria e beijaram suas mãos.

            Em vários capítulos, Maria segue contando sua vida:  como Joaquim contou para José que ela estava  grávida; o que aprendeu com a prima Izabel; o nascimento e a infância de Jesus; a morte de José; o tempo que passaram juntos até Ele completar 30 anos; a morte na cruz. No capítulo "O verbo se fez carne", sobre o nascimento de Jesus,  Maria diz para João: -"Como explicar para ti, um homem, para que compreendas? Penso que somente uma mulher compreenderia. Foi somente isso: um parto. E o menino nasceu. José estava ali, do meu lado, rompendo o costume dos homens ficarem longe das mulheres neste momento. Mas ele só conseguia manter o fogo aceso e retorcer sua túnica entre as mãos. Duas mulheres da aldeia me ajudaram. O menino nasceu como se um raio de luz atravessasse um cristal, de forma límpida. Os esforços e contrações me produziram mais angustia e nervosismo do que danos e dores. Ele nascera e eu o tinha em meus braços. Era mais uma criança , mas ao mesmo tempo única, diferente. Parecia uma luz, porém te digo, mais que uma luz, era o próprio sol. Ao tomá-lo nos braços, tão pequeno, tão frágil e enrugado, parecia-me impossível que fosse outra coisa além de uma criança normal. José o olhava com um pouco de temor e de curiosidade. Quem sabe pensava que o menino nasceria com alguma marca de poder e que desde o início seria mais forte, mais esperto, mais sobre-humano. Mas era um menino tão normal que as duas mulheres não notaram nada e foram embora. Lá fora era noite e à luz da pequena fogueira que José mantinha acesa, a gruta parecia iluminada pelo maior dos holofotes. Não que do Menino saíssem raios de luz. Ele era a própria luz. Eu não podia deixar de contemplá-lo. Pela primeira vez notei um sentimento que não tinha tido. Olhava-o e de repente comecei a adorá-lo. "

            Continuando, Maria conta que José pediu para pegar o menino, que dormia tranquilo. Segurou-o em seus braços fortes, olhou-o longamente , beijou seu rosto e lhe disse , suavemente, para não despertá-lo, que também o amava. Que não sabia que sangue corria nas suas veias, além do sangue da mãe; não sabia sequer se era um homem normal ou um ser extraordinário, sob aquela aparência tão simples; e não sabia se devia prostar-se aos seus pés, como o Messias que Ele era. Mas que dava graças ao Altíssimo por ter confiado nele para ajudar em sua obra , que o chamaria de filho, que estava ali para dar sua vida por ele, para cuidar da sua mãe e ajudá-lo na obra de Deus para a qual veio ao mundo.

            Tudo tão divino, tão lindo, tão mágico, que nem há o que falar. Apenas obrigado Jesus, Maria e José. Foi por amor a cada um de nós.

 


sexta-feira, 22 de novembro de 2024

Comentários dos leitores

                                   

                Uma das recompensas ao escrever crônicas  é receber os comentários dos leitores. Alguns são tão interessantes que vale a pena divulgá-los.

                Por exemplo, na última crônica que escrevi, "Brazilian thong", sobre a mania que temos de guardar e usar coisas velhas, os comentários foram divertidos e variados. Muitas leitoras contaram que guardam o umbigo dos filhos e que , de maneira alguma, aconteça o que acontecer, irão descartá-los. Uma, que mora na fazenda, contou que sua mãe enterrou seu umbigo no mourão da porteira do curral, para ter muito gado, mas que ela não conseguiu enterrar o da filha. Outra relatou um caso assustador,  do enterro de um  homem de 33 anos que tinha um bebê de um ano. O bebê estava num quarto ao lado da sala do velório. As pessoas escutavam o choro do bebê, iam olhar e ele estava dormindo tranquilo. Depois de várias repetições desse fato, resolveram olhar nos bolsos do paletó do morto. O umbigo do bebê estava lá! Retiraram o umbigo seco do bolso e o choro parou, cruzes! Já outra escreveu que está é perdida, pois além dos umbigos, guarda todos os escritos dos filhos, desde os rabiscos do pré até as provas do curso superior. E uma professora universitária contou que conserva toda a tonelada de papel de sua vida acadêmica. Caiu na bobagem de perguntar ao marido o que ele faria se ela morresse primeiro, e ele: "Coloco tudo dentro de uma caçamba e jogo fora" . É isso aí, pra que ela foi perguntar...Igual aquela pergunta fatídica que os homens não devem fazer ás mulheres: - " Você tem que escolher: prefere eu ou o cachorro? "  Outra leitora escreveu bonito, que estava fazendo o exercício de guardar apenas memórias e pessoas queridas no coração. E uma contou um longo caso de um enterro no qual o morto estava vestido com o paletó do seu marido. Por precaução, ela resolveu olhar nos bolsos. Encontrou um pacote de notas guardadas, que por pouco não  foram enterradas.

                E as roupas velhas? A maioria dos comentários das leitoras foi de que passariam a usar só calcinhas e camisolas novas e bonitas, pois vai que...Mas uma leitora, teimosa, disse que continuaria com suas camisolas desgastadas e desbotadas mesmo, pois eram as mais confortáveis. E outra contou uma história : a filha estava muito atrasada para a escola, ela levantou-se apressada, com os cabelos desgrenhados, de meia e um pijama velho horrível, quadriculado. Colocou por cima um roupão mais horrível ainda, calçou as chinelas havaianas nos pés com meia, entraram apressadas no carro e lá se foram. Tiveram que parar na casa do ex -marido, que não se conforma com o divórcio, para a filha pegar algo. Ele, o ex,  abriu a porta e quase morreu de susto ao vê-la naqueles trajes. A leitora concluiu que foi ótimo, talvez assim ele a esqueça (a feiura às vezes pode ser útil). Ah, e tem também o relato de um médico, sobre pacientes que chegam pra  consulta bem vestidos e arrumados. Mas quando tiram a roupa para o exame médico, é um susto só. Cada cueca velha, parecendo funil, deixando tudo de fora. Sem falar das mulheres de calça comprida que revelam as pernas cabeludas ou ensebadas de creme que não tem nem como examinar os joelhos, de tão escorregadios. E o caso que contou, do homem que foi acidentado e quando tiraram a roupa dele, no hospital, estava com a calcinha da esposa?  Ainda bem que era da esposa.

                Também apareceram comentários indignados sobre o japonês  que colecionava as calcinhas, sobre as risadas gostosas que os leitores deram, e outros mais genéricos, como este elogio : "Ana, você é uma observadora do aqui e agora, com sua incrível e especial pincelada de alegria. Os assuntos mais doloridos são transmutados em festa".

                Quanto às coisas velhas que vamos guardando nas gavetas,  gostei sobretudo de um texto do Mário Quintana, enviado por uma leitora que justificava o porque de não esvaziar suas gavetas: "Eu moro em mim. Deixo sempre as janelas entreabertas pra sentir o sopro de raros afetos. A porta? Só abro para poucos. Todos os dias, eu percorro meus cômodos, corredores e contemplo a vida pela varanda. Mas, as gavetas...Ah...As gavetas? Ainda não dá para abri-las. Senão, acabo tendo que morar dentro delas". Lembrei-me do Pedro Bial, que no seu poema  "A morte", também fala sobre esvaziar gavetas. Argumenta que morrer, só mesmo quando se tem mais de cem anos, quando o sono eterno pode ser bem vindo, já que não há mais quase nada guardado nas gavetas. Ou seja, o Pedro Bial pensa que só em torno dos cem anos poderemos ter as gavetas vazias... Mas uma  leitora enviou-me texto de uma escritora sueca que escreveu o livro  "Limpeza da morte: a prática sueca de se livrar de bens acumulados em vida".  A  autora aconselha a começar a descartar coisas que não se usa e a esvaziar as gavetas a partir dos 65 anos e ressalta : "comece cedo, antes que você fique velho e fraco demais para fazer isso, nunca é cedo demais".

                Assim, penso que a partir de certa idade, ou esvaziamos as gavetas ou passamos a morar dentro delas. Simples assim.

                

 

terça-feira, 19 de novembro de 2024

Brazilian thong


                                                           BRAZILIAN THONG

 

                 Desapegar de alguns objetos pode ser um problema enorme. Ou pelas lembranças boas que eles trazem, ou por não saber como e onde descartar, ou por preguiça e comodismo, ou por pensar que podemos achar outro uso para eles. E até mesmo por nostalgia, pois podem ser uma fonte de consolo e de conforto em tempos de saudades , como penso que foi o caso da minha mãe. Velhinha, sentada no banco do quintal, certo dia separava algumas tranqueiras de uma gaveta. Encontrou uma caixinha branca, sacudiu, abriu e me perguntou: -"Sabe o que tem aqui?" Na hora, por intuição e conhecendo como ela gostava de guardar coisas velhas, respondi: "- Deve ser o meu umbigo, sequinho!" Jesus, e era! Ficamos as duas boquiabertas, ela por eu ter adivinhado e eu por ela ter guardado meu umbigo por mais de 50 anos! Enterrei-o no canteiro do jardim e encerrei o assunto.

                Mas ás vezes guardar e usar coisas velhas pode causar complicações. Como na caso de minha filha. Em uma de suas andanças como mochileira pelo mundo, com uma amiga, foi da Índia para o norte da Tailândia, para um vilarejo bucólico com piscinas termais. Hospedou-se em uma pousada, num chalé entre árvores, mais afastado. A dona do chalé, uma tailandesa pequenina, avisou-a que  tinha aparecido por ali um ladrão de calcinhas. Explicou que minha filha não precisava se preocupar, pois ela já havia preparado uma armadilha para pegar o larápio sem-vergonha: iria dependurar várias calcinhas novas e coloridas no varal e ficar de tocaia. Assim, depois do banho, minha filha, tranquila,  lavou e dependurou na varandinha do chalé a calcinha velha, com a rendinha rasgada, elástico relaxado e vários buraquinhos na malha. Pensou que estava na hora de jogá-la fora, mas como ainda teria alguns dias de viagem e na Tailândia só se encontra calçolas esquisitas pra comprar, resolveu conservá-la por mais um tempo, jamais encontraria uma calcinha confortável como as brasileiras. Dormiu com os anjos e no dia seguinte, quando olhou no varal, a calcinha tinha desaparecido! E ao longe avistou o varal da tailandesa com as calcinhas novas e coloridas tremulando ao vento, intactas.  Dias depois, a tailandesa avisou que a policia local tinha desconfiado de um turista japonês que estava hospedado lá por perto. Deram uma batida na casa dele e encontraram calcinhas de todo tipo. Assim, estavam precisando de testemunhas para reconhecer as calcinhas e a minha filha precisava ir até a delegacia reconhecer a dela. Horrorizada, minha filha disse que jamais iria até lá reconhecer a calcinha velha, tinha vergonha. Mas a tailandesa tanto insistiu que ela foi. O policial pequenino (lá todos são pequeninos) espalhou várias calcinhas sobre a mesa, ela reconheceu a calcinha esburacada, ele a colocou em um saquinho de plástico, escreveu em letras garrafais "BRAZILIAN THONG" e a guardou como prova do crime. Deve estar por lá ainda, na forma de pó. E o japonês, não se sabe o paradeiro.

                Ah, e tem também um caso local, da camisola da minha amiga. Foi assim: há alguns anos , em Uberlândia, no centro, aconteceu  a explosão de um botijão de gás durante a noite. Um acidente terrível, que danificou prédios e lojas. A minha amiga morava em um prédio próximo . Quando ouviu o estrondo da explosão, pensou que era um avião que tinha caído em cima do prédio. Levantou-se como estava, com uma camisola confortável, mas com fendas laterais,  bem velha, feia, desbotada e descosturada  nas laterais. Desceu esbaforida todos os degraus, do décimo segundo andar até o térreo, sem chinelos, sem óculos, sem nada, só de camisola velha. Todos os moradores do prédio desceram também como estavam. Quando o dia amanheceu, ficaram olhando uns para os outros, consternados, e ela encolhida na sua camisola desbotada e descosturada. Jurou que , a partir daquele dia, só dormiria com camisolas lindas e novas, pronta para qualquer explosão de botijão de gás, queda de avião ou terremoto.

                Bem, depois do umbigo, da calcinha velha e da camisola com fendas, não resta mais nada a contar.


sábado, 5 de outubro de 2024

O sujeito da oração é você


                                                  

                Não gosto de enviar mensagens de bom dia, boa tarde, boa noite...Não sei se as pessoas têm tanto tempo assim de ficarem lendo. Mas gosto de muitas que recebo. Por exemplo, desta : -"Se é para viver, vamos viver direito. Com conteúdo. Troque o verbo, mude a frase, inverta a culpa. O sujeito da oração é você. A história é sua, mãos à obra! Melhore aquele capítulo, joque fora o que não cabe mais, embole a tristeza , o medo, aceite seus erros, reescreva-se. Republique-se. Reinvente-se. E transforme-se na melhor edição feita de você."

                É isso aí. Cada um escreve a sua história. Se aquele capítulo não está bom, embola tudo, amassa, joga no lixo e começa a escrever outro. Invente, ouse, sonhe, enfrente desafios. Mesmo que dê muita confusão. Como aconteceu com a minha amiga, que não vou contar o nome, para proteger a personagem.

                Ela, professora universitária e já na casa dos 60 anos,  estava se sentindo fora do contexto social porque não tinha Facebook. Resolveu pedir auxílio à uma sobrinha para entrar nessa rede. Deu certo e já no primeiro dia, muito conhecida e amada pelos alunos, recebeu dezenas de mensagens. Algumas que achou muito estranhas, parabenizando-a e oferecendo apoio por ela ter assumido sua orientação sexual. No segundo dia, a mesma coisa. Sem entender o que acontecia, pediu socorro novamente á sobrinha. Essa chamou-a de "burra" e mostrou o problema. Havia uma pergunta na descrição do perfil: -"Você gosta de menino ou de menina ?" A minha amiga, pensando em meninos e meninas criancinhas, pensou :- " Uai, claro que gosto dos dois ". E marcou. Pronto, com isso se identificou como bissexual. E recebeu todo apoio. Apavorada, saiu do Facebook e nunca mais voltou. Embolou este capítulo e jogou fora, foi uma reinvenção que não deu certo. Mas continuou tentando se reinventar e transformar-se em uma edição melhor dela mesma. Já com dois cursos de graduação, pós-doutorado no exterior, aposentada, está agora cursando disciplina optativa na universidade. Chega na sala de aula com seus vestidinhos estampados coloridos e de alcinhas, caneta com florzinha de crochê na ponta e senta-se no meio de jovens  vestidos de preto e com tatuagem. Dia destes o professor perguntou: "  - Quem é favorável á liberação da maconha?" Todos levantaram a mão, menos ela...Ah, e teve um colega que perguntou : -" Você beija menina? Pediram para eu perguntar pra você." E ela, espantada: " Na boca???"  Depois, completou : -"Eu beijava menino, mas no momento não beijo mais nada!" Agora ela anda escrevendo o próximo capítulo.

                O importante é viver com conteúdo e se reescrever sempre. Eu, por exemplo, tentando enriquecer os capítulos finais da minha história, resolvi ser fazendeira, sem entender do assunto. Vou trocando os verbos, colocando conjunções , mudando as frases e vai dando certo . Por exemplo: "Tenho trinta vacas e não tenho nenhum boi. Não posso comprar outro porque todos os que comprei morreram. " Daí coloco uma conjunção adversativa, acrescento um verbo e resolvo o problema: "Não posso comprar um boi, MAS posso pedir um emprestado" . E os casos que acontecem por lá dão emoção aos capítulos. Como no caso da galinha. Tenho três galinhas e dois galos.  Dia desses, o caseiro enviou um aúdio avisando que o galo foi subir na galinha  e escadeirou a galinha (do verbo escadeirar, lesar a bacia abdominal e torácica)  . E ele não sabia se podia comer a galinha. Daí, coloco uma interjeição, uma conjunção causal  e encerro o drama: "Jesus!Mas isso acontece?? Melhor o caseiro comer a galinha e eu comer o galo quando for na fazenda, PORQUE ainda restará um galo e a galinha não ficará sofrendo". Lembrando que esse é um período composto e na oração sindética aditiva "e eu comer o galo" , o sujeito é o pronome pessoal reto, "eu". Porque cada um de nós  é sempre o sujeito da oração.