No domingo, oito
de outubro, Uberlândia encheu-se de
cores, de música , de dança e de rufar de tambores. De todos os cantos da
cidade chegaram , na Praça Rui Barbosa, os ternos do Congado, uma festa de
origem africana. Um ritual do povo negro em homenagem à Nossa Senhora do Rosário
e aos santos negros, São Benedito e Santa Efigênia.
Das janelas
do meu apartamento, eu assisti tudo. A Banda Municipal iniciou as comemorações
e os ternos desceram pela Avenida Floriano Peixoto. Quando chegavam na praça em
frente à igreja do Rosário, acontecia o apogeu das danças, dos cantos e do
rufar dos tambores, na apresentação para a imagem de Nossa Senhora do Rosário,
cercada de flores.
Foi tudo bem organizado e de acordo com a
tradição das raízes do Congado. Cada
terno tem os seus componentes, a sua vestimenta, o seu canto, o rei , a rainha,
as princesas, o capitão. E anjinhos também. O terno vai devagar, cadenciado,
tocando e dançando em louvor à santa. O tipo de movimento e de dança é sempre o
mesmo: saltitante, marcada pela ginga e pelo cruzamento de pernas e de pés. A
direção é horizontal, com deslocamentos
laterais, dois passos pra lá, dois pra cá, certinhos. O capitão, que é o
líder, vai na frente, cantando os versos
e os demais respondem em coro. Os cantos são destinados a tirar o grupo da ação
das forças ruins e a invocar a proteção de Nossa Senhora. Falam dos sofrimentos
da escravidão, dos lamentos de um povo arrancado de sua terra. Ao mesmo tempo
que invocam os santos e as forças do
alto, também são cantos de redenção , de esperança de uma vida melhor. São
espontâneos, curtos e singelos, como alguns exemplos de cantos do Congado que
encontrei na internet: "trabalha nêgo, trabalha direito, a Senhora do
Rosário merece o nosso respeito"; "ora
viva, cai sereno, na aba do meu chapéu, a bandeira hoje ela sobe, pra ficar
perto do céu; " ô viva nosso rosário, ô viva São Benedito, eu danço este
reinado, danço porque acredito". Também há cantos de gratidão à Princesa
Isabel, pela libertação dos escravos: " no tempo do cativeiro, preto não
tinha valor, salve a Princesa Isabel, que o preto libertou". "no dia
13 de maio, eu amarrado na corrente, veio Princesa Isabel, nêgo véio libertou,
foi Nossa Senhora, que esse nego véio salvou."
Assim, cantando
, dançando, tocando tambores, tamborins , cuícas, pandeiros e as latinhas amarradas nas pernas dos homens, devagar
os ternos iam passando. Os tambores soando alto na rua, invocando de um modo
africano e selvagem, os santos católicos e a coroação dos reis congos. Os
ternos do Congado são divididos em grupos distintos, como os guardas de Congo,
que se vestem de verde e de rosa, significando o caminho para a Senhora passar,
com galhos verdes e flores. E os do grupo de Moçambique, que se vestem com as
cores de Nossa Senhora, azul e branco. Passam cada um com sua bandeira
colorida, enfeitada de fitas e bordados. Com o nome do terno de um lado e do
outro, de N.S. do Rosário, São Benedito ou Santa Efigênia, lembrando a proteção
que estes santos deram aos escravos negros. Carregadas por moças bonitas que
rodavam a bandeira sem parar e sem cansar. Bandeiras com fitas grandes
seguradas nas pontas por mulheres com vestidos rodados e confortáveis, e com sandálias
brancas novas, dançando sem parar. Com tranças verdadeiras e tranças falsas. Muitas
crianças pequenas, vestidas com esmero, com as cores do terno. Algumas
carregavam e tocavam tambor, outras dançavam com habilidade e faziam
acrobacias. Os homens, com chapéus e
capas enfeitados de contas, miçangas, franjas e bordados, um luxo só. Alguns de
branco impecável, outros com cores vivas e brilhantes. Cores e mais cores (e
também suor e mais suor, pois estava um calor escaldante, mais de 30 graus). Levavam
cajado, bastão ou espada, que são elementos materiais, investidos de magia, que funcionam como fetiche, centralizando o
poder e a força sobrenatural. Colocavam o cajado com a ponta no chão e dançavam
em volta, em círculo e curvados. Mulheres com vestidos enfeitados com rendas,
crochê, bordados. Com passinhos pra lá e
pra cá, na cadência da música, tudo bem ensaiado. Cabelos enfeitados ou com
panos enrolados. Algumas com criança de colo, outras amamentando o bebê vestido
com a roupa igual a da mãe. Tinha cadeirante
e muitos idosos ágeis, que cantavam com entusiasmo e faziam acrobacias com o tambor. Ah, os
tambores! Grandes, médios, pequenos, tocados com vigor e no mesmo ritmo o dia
todo: tá-tá-tum, tá-tá-tum (á noite, mesmo depois que todos se foram, os tambores
continuaram retumbando na minha cabeça).
Algumas pessoas ajoelhavam com o tambor e choravam na frente da Santa,
que decerto consolava cada um deles. Ela, Nossa Senhora do Rosário, deve ter ficado
feliz com tanta demonstração de fé, alegria e empolgação. Ouvi bem um terno
cantando com estardalhaço: "Adeus Nossa Senhora, estou indo embora",
muitas e muitas vezes. E depois se foi, dobrando a esquina. Os reis e rainhas
dos ternos eram mesmo majestosos, com capas pesadas de veludo enfeitadas de
dourado e coroas enormes e pesadas, lembrando a opulência dos reis africanos. Novos reis e rainhas são coroados a cada ano,
no final da festa. Existe também o rei e a rainha vitalícios. Segundo o
porteiro do meu prédio, que é capitão do terno Amarelo Ouro, situado no Bairro
Santa Mônica, os reis vitalícios são o casal D. Darci e o Sr. Zé do cinema. Vi
os dois sentados durante a festa ao lado da imagem da Santa, majestosos em suas
vestimentas. Curiosa, perguntei ao capitão do terno Amarelo Ouro qual era o
canto deles: "dormi a noite no sereno da madrugada, sou amarelo ouro com
amor, felicidade é de ouro , é de prata, a Mamãe do Rosário também é de
ouro"; "rei, cadê a rainha, rainha, cadê o rei, nós viemos visitar, a
rainha do nosso rei"; "na gaiola tem um canarinho, na gaiola tem um
sabiá, só eu, só eu, só eu que não sei cantar". Achei lindo...
Além do
desfile dos ternos, teve hasteamento de bandeiras, procissão com as imagens de
Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito; missa com o Padre Fábio; coroação
dos reis e rainhas para o próximo ano. E no entorno da praça via-se de tudo:
barraquinhas de cachorro quente, churrasquinhos e bebidas, muita bebida;
pessoas embriagadas fazendo algazarras ou caídas no chão; anjinhos sentados,
cansados e segurando as asinhas; princesas com coroas e vestidos brancos
descalças e carregando as sandálias; homens com carrinhos catando latinhas;
público cantando e dançando junto com os ternos; crianças brincando com os
tambores; grupos fazendo pose para fotos. E lixo, muito lixo, de dar tristeza. Enfim,
tudo entrelaçado: a festa, a fé, a alegria das cores, a bebida, a tradição do
ritual africano, o rufar dos tambores, a despedida para o próximo ano.
Que Nossa
Senhora do Rosário e São Benedito abençoem a todos. Até o próximo ano, se Deus quiser.
Você captou bem o clima desta festa tão importante, está tudo ali o sagrado e o profano junto e misturado. Mas sem dúvida uma festa linda e cheia de significados.
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