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quinta-feira, 9 de novembro de 2023

Ao rufar dos tambores




                               

            No domingo, oito de outubro, Uberlândia  encheu-se de cores, de música , de dança e de rufar de tambores. De todos os cantos da cidade chegaram , na Praça Rui Barbosa, os ternos do Congado, uma festa de origem africana. Um ritual do povo negro em homenagem à Nossa Senhora do Rosário e aos santos negros, São Benedito e Santa Efigênia.

            Das janelas do meu apartamento, eu assisti tudo. A Banda Municipal iniciou as comemorações e os ternos desceram pela Avenida Floriano Peixoto. Quando chegavam na praça em frente à igreja do Rosário, acontecia o apogeu das danças, dos cantos e do rufar dos tambores, na apresentação para a imagem de Nossa Senhora do Rosário, cercada de flores.

             Foi tudo bem organizado e de acordo com a tradição  das raízes do Congado.   Cada terno tem os seus componentes, a sua vestimenta, o seu canto, o rei , a rainha, as princesas, o capitão. E anjinhos também. O terno vai devagar, cadenciado, tocando e dançando em louvor à santa. O tipo de movimento e de dança é sempre o mesmo: saltitante, marcada pela ginga e pelo cruzamento de pernas e de pés. A direção é  horizontal, com deslocamentos laterais, dois passos pra lá, dois pra cá, certinhos. O capitão, que é o líder,  vai na frente, cantando os versos e os demais respondem em coro. Os cantos são destinados a tirar o grupo da ação das forças ruins e a invocar a proteção de Nossa Senhora. Falam dos sofrimentos da escravidão, dos lamentos de um povo arrancado de sua terra. Ao mesmo tempo que  invocam os santos e as forças do alto, também são cantos de redenção , de esperança de uma vida melhor. São espontâneos, curtos e singelos, como alguns exemplos de cantos do Congado que encontrei na internet: "trabalha nêgo, trabalha direito, a Senhora do Rosário merece o nosso respeito";  "ora viva, cai sereno, na aba do meu chapéu, a bandeira hoje ela sobe, pra ficar perto do céu; " ô viva nosso rosário, ô viva São Benedito, eu danço este reinado, danço porque acredito". Também há cantos de gratidão à Princesa Isabel, pela libertação dos escravos: " no tempo do cativeiro, preto não tinha valor, salve a Princesa Isabel, que o preto libertou". "no dia 13 de maio, eu amarrado na corrente, veio Princesa Isabel, nêgo véio libertou, foi Nossa Senhora, que esse nego véio salvou."

            Assim, cantando , dançando, tocando tambores, tamborins , cuícas, pandeiros e  as latinhas amarradas nas pernas dos homens, devagar os ternos iam passando. Os tambores soando alto na rua, invocando de um modo africano e selvagem, os santos católicos e a coroação dos reis congos. Os ternos do Congado são divididos em  grupos distintos, como os guardas de Congo, que se vestem de verde e de rosa, significando o caminho para a Senhora passar, com galhos verdes e flores. E os do grupo de Moçambique, que se vestem com as cores de Nossa Senhora, azul e branco. Passam cada um com sua bandeira colorida, enfeitada de fitas e bordados. Com o nome do terno de um lado e do outro, de N.S. do Rosário, São Benedito ou Santa Efigênia, lembrando a proteção que estes santos deram aos escravos negros. Carregadas por moças bonitas que rodavam a bandeira sem parar e sem cansar. Bandeiras com fitas grandes seguradas nas pontas por mulheres com vestidos rodados e confortáveis, e com sandálias brancas novas, dançando sem parar. Com tranças verdadeiras e tranças falsas. Muitas crianças pequenas, vestidas com esmero, com as cores do terno. Algumas carregavam e tocavam tambor, outras dançavam com habilidade e faziam acrobacias.  Os homens, com chapéus e capas enfeitados de contas, miçangas, franjas e bordados, um luxo só. Alguns de branco impecável, outros com cores vivas e brilhantes. Cores e mais cores (e também suor e mais suor, pois estava um calor escaldante, mais de 30 graus). Levavam cajado, bastão ou espada, que são elementos materiais, investidos de magia,  que funcionam como fetiche, centralizando o poder e a força sobrenatural. Colocavam o cajado com a ponta no chão e dançavam em volta, em círculo e curvados.  Mulheres com vestidos enfeitados com rendas, crochê, bordados.  Com passinhos pra lá e pra cá, na cadência da música, tudo bem ensaiado. Cabelos enfeitados ou com panos enrolados. Algumas com criança de colo, outras amamentando o bebê vestido com a roupa igual a da mãe.  Tinha cadeirante e muitos idosos ágeis, que cantavam com entusiasmo  e faziam acrobacias com o tambor. Ah, os tambores! Grandes, médios, pequenos, tocados com vigor e no mesmo ritmo o dia todo: tá-tá-tum, tá-tá-tum (á noite, mesmo depois que todos se foram, os tambores continuaram retumbando na minha cabeça).  Algumas pessoas ajoelhavam com o tambor e choravam na frente da Santa, que decerto consolava cada um deles. Ela, Nossa Senhora do Rosário, deve ter ficado feliz com tanta demonstração de fé, alegria e empolgação. Ouvi bem um terno cantando com estardalhaço: "Adeus Nossa Senhora, estou indo embora", muitas e muitas vezes. E depois se foi, dobrando a esquina. Os reis e rainhas dos ternos eram mesmo majestosos, com capas pesadas de veludo enfeitadas de dourado e coroas enormes e pesadas, lembrando a opulência dos reis africanos.  Novos reis e rainhas são coroados a cada ano, no final da festa. Existe também o rei e a rainha vitalícios. Segundo o porteiro do meu prédio, que é capitão do terno Amarelo Ouro, situado no Bairro Santa Mônica, os reis vitalícios são o casal D. Darci e o Sr. Zé do cinema. Vi os dois sentados durante a festa ao lado da imagem da Santa, majestosos em suas vestimentas. Curiosa, perguntei ao capitão do terno Amarelo Ouro qual era o canto deles: "dormi a noite no sereno da madrugada, sou amarelo ouro com amor, felicidade é de ouro , é de prata, a Mamãe do Rosário também é de ouro"; "rei, cadê a rainha, rainha, cadê o rei, nós viemos visitar, a rainha do nosso rei"; "na gaiola tem um canarinho, na gaiola tem um sabiá, só eu, só eu, só eu que não sei cantar". Achei lindo...

            Além do desfile dos ternos, teve hasteamento de bandeiras, procissão com as imagens de Nossa Senhora do Rosário e de São Benedito; missa com o Padre Fábio; coroação dos reis e rainhas para o próximo ano. E no entorno da praça via-se de tudo: barraquinhas de cachorro quente, churrasquinhos e bebidas, muita bebida; pessoas embriagadas fazendo algazarras ou caídas no chão; anjinhos sentados, cansados e segurando as asinhas; princesas com coroas e vestidos brancos descalças e carregando as sandálias; homens com carrinhos catando latinhas; público cantando e dançando junto com os ternos; crianças brincando com os tambores; grupos fazendo pose para fotos. E lixo, muito lixo, de dar tristeza. Enfim, tudo entrelaçado: a festa, a fé, a alegria das cores, a bebida, a tradição do ritual africano, o rufar dos tambores, a despedida para o próximo ano.

            Que Nossa Senhora do Rosário e São Benedito abençoem a todos.  Até o próximo ano, se Deus quiser.

         

Um comentário:

  1. Você captou bem o clima desta festa tão importante, está tudo ali o sagrado e o profano junto e misturado. Mas sem dúvida uma festa linda e cheia de significados.

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