A foto do menino morto
numa praia da Turquia chocou o mundo. O pequeno Aylan Kurdi, de três anos,
estava com o corpinho emborcado na areia dura, o rosto um pouco de lado,
encoberto pelo vai e vem da maré. Vestido
com uma camisetinha vermelha, um pouco levantada deixando as costas descobertas,
e uma bermuda azul. E de sapatinhos que não se desgarraram dos seus pés,
incrível isso. Coisa mais linda e terna são os sapatinhos de crianças. Mas ali,
naquela cena tão triste, naquela imagem devastadora e pungente do pequeno
náufrago sírio na areia, os sapatinhos causavam espanto e incredulidade. Como
as ondas do mar não arrancaram os sapatinhos? Com ele estava assim, tão
plácido, tão arrumadinho? Deveria ser uma foto bonita, de uma criança na praia,
duas das coisas mais fascinantes do mundo. Mas não é. Dói olhar a foto, dói
olhar aquele corpinho inerte.
Aylan morreu no mar Egeu. Estava com sua família, o
pai Abdullah, a mãe Rehan e o irmão Galip de cinco anos. Fugiam da guerra civil
na Síria e queriam chegar à Grécia e depois ao Canadá, mas Aylan não devia ter
noção disso. No bote havia mais 19 pessoas, todas tentando a travessia de três
quilômetros, organizada por traficantes e em condições precárias, para chegar à
ilha grega de Kos. Lotado e no meio de ondas muito altas, o bote inflável virou.
Ele, o irmão e a mãe não sabiam nadar e da família apenas o pai escapou. Ele, o
pai, que aparece nas fotos tão perdido e
desolado, voltou à Síria para enterrar sua família. Nessa tragédia, morreram mais 9 pessoas, seis delas crianças.
Todos os dias, corpos inertes de crianças refugiadas sírias,
afegãs, líbias, eritreias e sudanesas jazem nas areias do Mediterrâneo. Como
explicar então que, de repente, o
menininho morto encontrado na praia passou a representar a dor de todas as
crianças mortas? De todas as que têm suas vidas ceifadas por extremismos
religiosos? Como passou a representar a
dor de centenas de milhares de refugiados e se transformou numa indignação
mundial ? Como, se há tantas crianças brasileiras abandonadas, dormindo nas
calçadas, morrendo de fome ou de bala perdida ? E as quatro crianças que
morreram espremidas e sufocadas com mais 67 refugiados em uma minivan perto de Viena? Por que não nos comovemos com
esses corpos como nos comovemos com o de Aylan?
As razões podem ser várias, conforme registrado na
mídia. Talvez porque o menininho representa toda uma infância perdida. Talvez
porque os bracinhos e as perninhas tinham uma fofura que doía. Ou então, porque
ele estava tão arrumadinho, tão bonitinho para começar uma nova vida. Ou simplesmente porque estava
justo na linha entre o mar e a areia, onde tantas crianças fazem seus castelos
de brinquedo. Ou porque o seu corpinho
foi devolvido pelo mar na mesma posição em que muitas crianças dormem. Ou mesmo
porque qualquer um de nós poderia identificar no menininho os nossos filhos, os
nossos netos, com aquela roupa de passeio tão comum e bonitinha (e com
sapatinhos nos pés). Ou então porque seu corpinho largado na areia representa
um contraste chocante com as cenas de desespero que vemos na crise dos
refugiados.
Enfim, a crueza da foto do menininho e o que tem por
trás dela, o que ela realmente representa, está mudando os rumos da tragédia
humanitária que se desenrola aos nossos olhos. Mas com cada uma dessas crianças
mortas, morre um pouquinho de cada um de
nós. Humanidade, nós falhamos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário