Garrafas retiradas do jardim |
Dia da Cavalgada |
Um dos filmes mais conhecidos de
Alfred Hitchcock, o gênio do suspense, é "Janela Indiscreta". Nele,
um fotógrafo, que se recupera de sua perna quebrada, acompanha com um binóculo
a vida dos seus vizinhos do prédio, observando as suas janelas. Desconfia que
tenha ocorrido um assassinato e o filme se desenrola em meio a romance, drama e
suspense.
Ando
me sentindo como este fotógrafo. Sempre que posso, olho a vida pelas janelas do
meu apartamento na Praça do Rosário, no terceiro andar, bem no coração da
cidade. De uma das janelas da sala, vejo
a Av. Floriano Peixoto e acompanho os desfiles e passeatas. O Sete
de Setembro, as passeatas pró e contra Bolsonaro, a passeata LGBTQ+, os ternos da festa do
Congado. Em um dia de tempestade, estava eu olhando quando dois galhos enormes
do cedro da praça se quebraram. Caíram
em cima de uma fila de carros que passava devagar e um carro pequeno ficou
esmagado. Após longos minutos dramáticos, com a chegada do socorro, saiu do
carro um homem, sem ferimentos. Viveu de novo.
Da
outra janela da sala, vejo a praça em frente à sorveteria Bicota. Durante
algumas tardes, assisto às apresentações de um grupo de capoeira, com músicas
gostosas. Vejo os catadores de recicláveis tentando separar os materiais nos
cinco containers de lixo em frente. Os funcionários dos bares próximos
despejando centenas de garrafas de vidro nos containers, com um barulho
ensurdecedor. Os varredores de rua, toda manhã, sem nunca desistir, retirando o
lixo da praça que fica imunda nos finais de semana. Nas noites de quinta a domingo, aprecio a
multidão. Tem de tudo. Música ao vivo misturada com pessoas tomando sorvete nas
mesinhas. Jovens tatuados, de piercings, de preto, bebendo cerveja na garrafa. Casais
heterossexuais, homossexuais, indefinidos.
Pessoas bem vestidas e bonitas. Outras
com cabelos loucos e coloridos. No dia do Halloween, por exemplo, foi um
desfile de vampiros bem debaixo da minha janelas (mas também tinha alguns
vestidos com saias de bailarina e asas de borboleta). No meio da praça ficam os policiais, tentando colocar um pouco
de ordem. Dia desses, passou um carro
com música estrondosa. Sempre passam por aqui, fazendo as janelas do prédio
tremerem. Só que nesse dia o motorista deu azar, passou justo pertinho dos
policiais. Eles foram ágeis, pararam e levaram o carro, junto com o motorista
espantado. Tenho um neto de seis anos que gosta de olhar o agito também, mas
tem medo da polícia. Fica atrás da cortina, olhando de soslaio. Certa vez,
estava nessa posição quando meu filho chegou, deu uma espiada pela janela e
falou: "Oh, chegou a polícia civil!" E o neto, quase arrancando a
cortina de susto: "O que, a polícia me viu???"
Da
janela do meu quarto, vejo outro ângulo da praça: a Igreja do Rosário, com a
cruz lá no alto e a pracinha na frente (faço o sinal da cruz antes de olhar).
Assisto as apresentações dos ternos do
Congado. Os tambores retumbam dentro do meu quarto e escuto o leilão de prendas
de dez reais. É bonito de se ver as mulheres segurando fitas e dançando em
volta das bandeiras, os homens com chapéus enfeitados e chocalhos nas pernas, as
roupas de cetim em amarelo dourado, verde, azul e branco; os cantos pra Nossa
Senhora. Também observo casamentos aos sábados. Convidados bem arrumados,
noivas chegando em carrões antigos, madrinhas com vestidos da mesma cor, daminhas com vestidos rodados, um luxo.
Durante a semana, aparecem pessoas tirando fotos em todos os ângulos, com a
igreja ao fundo. Outras caminhando, passeando com cachorros, fazendo o sinal da
cruz. Aos domingos, com o sino tocando, o padre fica na porta da igreja
cumprimentando os fiéis antes da missa. Dia desses, à noite, vi uma limousine branca
imensa estacionando na praça. Um motorista elegante, de terno e quepe azul
escuro, abriu a porta para um grupo de mocinhas bem vestidas e tagarelas, que
entraram no carro e lá se foram, não sei pra onde.
Da
janela de outro quarto, quase toco o ipê rosa do jardim da frente do prédio. É
lindo acompanhar suas transformações ao longo do ano: o cair e o nascer das folhas, flores e frutos
e o tapete de flores rosa no chão. Pombinhas, bem- te- vi e periquitos pousam e
cantam em seus galhos. No banco de cimento redondo debaixo do ipê, acontece de
tudo. Pessoas sem teto colocam papelão e dormem. Casais trocam beijos
apaixonados. Jovens compram drogas. Outros bebem e jogam as garrafas no jardim.
Idosos de mãos dadas sentadinhos, talvez esperando a banda passar, como naquela
canção de Chico Buarque: "estava à toa na vida, o meu amor me chamou, pra
ver a banda passar, cantando coisas de amor". Debaixo do ipê tem um
jardim, que tento cuidar. Ando elaborando uma lista do que as pessoas jogam
nesse canteiro. Há itens como guardanapos e fraldas descartáveis; colheres,
canudinhos, copos e tampinhas de
plástico de todas as cores; isqueiros; garrafas pet; latinhas; garrafas de
pinga, de uísque, de gim, de vodka, de cerveja; palitos de picolé e muito mais.
Encontrei até um cobertor azul novo, de bebê, bordado com o nome "Bruno",
que vou reciclar. Por enquanto o jardim está resistindo, mas não sei até
quando.
Da
janela da sala de jantar, sempre que posso , olho o sol se pondo entre os
prédios, com as árvores da praça do Coreto enfeitando. E agradeço por mais um
dia.
E
assim, entre janelas, a vida passa. Com suas dores e suas alegrias. E com a cruz
da igrejinha e o céu azul ao fundo. E com cada por de sol lembrando que, por
mais bonito que seja, amanhã pode ter outro mais lindo ainda.