Margem do rio São Francisco em Cachoeira do Manteiga |
A poesia "Cidadezinha
qualquer", de Carlos Drummond de Andrade, é bem simples, mas expressa, com
ternura e um pouco de ironia, o que é uma cidade pequena:
Casas entre bananeiras
mulheres entre laranjeiras
pomar amor cantar.
mulheres entre laranjeiras
pomar amor cantar.
Um homem vai devagar.
Um cachorro vai devagar.
Um burro vai devagar.
Um cachorro vai devagar.
Um burro vai devagar.
Devagar... as janelas olham.
Êta vida besta, meu Deus!
Não
tem como ler essa poesia e não pensar em Cachoeira do Manteiga, um povoado na
beira do São Francisco, a quatro km da nossa fazenda. Tudo lá é devagar,
ninguém tem pressa e todos se conhecem. Todas bem moreninhas. Só tem uma rua
asfaltada, o restante é de terra empoeirada. No centro, uma igrejinha singela e
uma praça, onde as pessoas ficam sentadas nos bancos esperando o tempo passar e
a meninada brinca nos aparelhos de fazer ginástica. E uma quadra coberta, onde
tudo acontece: as peladas, as formaturas, a festa junina, os treinos de
futebol. O técnico é o Bill, um ceguinho que anda por todo lado com um guia.
Não sei como, ele apita as faltas direitinho, eu vi. Tem também o Clube
Náutico, onde ficam guardados muitos barcos de pescadores que vêm de longe
pescar no São Francisco, mas os peixes sumiram. E a padaria, que fica aberta só
até o pãozinho de sal acabar. A escola, a creche, um ou dois barzinhos que
vendem pinga, cerveja e salgadinhos .
Nesse
cenário, fomos curtir a noite do último Corpus Christi, em junho. O Zé, eu, minha
filha com o marido e os três filhos. Haveria missa na igrejinha, com o padre
que veio de fora. Depois, a procissão, passando pelas ruas de chão batido que
foi decorado com desenhos caprichados feitos de serragem, folhas e materiais
coloridos. A igrejinha estava lotada e haveria o batizado de um menininho de uns quatro anos, o Vinícius. O Zé, eu e os
netos fomos andando pelo corredor, procurando lugar pra sentar. Só tinha no
primeiro banco e lá ficamos. Acontece que era o lugar dos coroinhas e cantores
e ninguém teve coragem de falar, pois o Zé é fazendeiro conhecido na região. E
daí a missa não acabava. Uma moça leu um salmo enorme, ia passando folhas e
folhas. Tão grande que o Vinícius dormiu de boca aberta e dois netos, pesados,
foram caindo em cima de mim, de sono. Mesmo catequista, não tive outra saída e
disse para o Zé que ia sair. Ele ficou indignado, disse que ficaria até o fim
(claro, era conhecido e estava no primeiro banco, não era por fé não). Saímos e
ele ficou. Fomos comer coxinhas e pastéis no bar da esquina, uma delícia.
Mas a noite estava agitada na
Cachoeira. Havia cinco carros de polícia correndo pra lá e pra cá. O normal é
apenas um, quando tem. Requisitaram reforço policial porque um baderneiro
estava dando cavalo de pau com o carro e estragando os desenhos de serragem que o povo
tinha feito nas ruas. Quando o único policial foi prendê-lo, resistiu à prisão
e fugiu. Daí veio o reforço. Não conseguiram prendê-lo, mas como o irmão também
estava aprontando, levaram o irmão dele e a esposa ficou em prantos (tudo isso
nos contaram enquanto comíamos coxinhas e os carros corriam por ali). Brinquei
com o meu neto de seis anos, o Moisés, que tem muito medo de polícia. Disse-lhe
pra ficar esperto, pois se o Yuri (o irmão dele) aprontar, ele é quem vai preso.
Respondeu-me que isso é injusto e que ia sair correndo.
Nisso,
passou a procissão. E o Zé, todo concentrado, com a velinha acesa na mão. Não
viu nada, não sabia de nada, deve ter rezado muito...Nos juntamos a ele e fomos
rezando e cantando, passando pelos desenhos, alguns estragados pelo vândalo
fujão.
Voltamos
pra fazenda pra dormir em paz. De repente, olhei no espelho e vi que estava sem
a correntinha de ouro e o pingente que sempre uso. Num lampejo, lembrei-me que
a tirei do pescoço para desembaraçar e a deixei em cima da mesa do bar. O genro
se ofereceu pra voltar lá. Foi com o Yuri, de 10 anos. Voltaram sem ela. Mas o
neto, que tinha ficado escondido dentro do carro, com medo dos vários homens
que estavam no bar, disse que viu um de boné vermelho com a correntinha
enrolada no braço e que ele a escondeu. Valente e enfezada, peguei o carro e
voltei pra Cachoeira com o Yuri. Ele, escondido, mostrou-me o moço moreninho de
boné vermelho. Puxei uma cadeira e sentei-me diante dele (tipo estes filmes de faroeste).
Olhei-o bem nos olhos e disse-lhe que tinha esquecido a minha correntinha em
cima da mesa. Perguntei-lhe se ele não a tinha encontrado. Enrolou um pouco e
disse que ia me ajudar a procurar. E no mesmo instante a encontrou caída no
meio da terra. Assim a recuperei.
Pois
é, Carlos Drummond, mesmo nas cidadezinhas com bananeiras e laranjeiras e onde
a vida passa devagar, muitas coisas acontecem.