Zé experimentando o tênis
Na poesia "Desejos", de Carlos
Drummond de Andrade, ele deseja às pessoas coisas simples, singelas e gostosas, que fazem parte do
cotidiano e que muitas vezes a gente nem percebe. Entre outros desejos,
escreveu: "desejo a vocês fruto do
mato, cheiro de jardim, namoro no portão, filme antigo na TV, ver a banda
passar, noite de lua cheia, sarar de resfriado, tomar banho de cachoeira,
queijo com goiabada, bater palmas de alegria, calçar um velho chinelo, sentar
numa velha poltrona, ouvir a chuva no telhado, bolero de Ravel..."
Tenho certeza de que o Zé, meu
marido, se lesse essa poesia, gostaria mesmo era de sentar na velha poltrona e,
principalmente, de calçar um velho chinelo. Ou uma botina velha ou um tênis arregaçado. O problema é que o pé
dele é gordinho, alto e quadradinho na frente (bico fino, nem pensar), por isso
é árduo encontrar algum calçado que fique confortável. Quando encontra, usa o
mesmo sapato por anos, até acabar. Certa vez, quando ainda jogava futebol duas
vezes por semana, descobriu na hora do jogo que o tênis preto de lona tinha
rasgado todo na lateral. Jamais deixaria de jogar por causa de um detalhe
desses. Ressuscitou um tênis branco que já tinha encostado: calçou o pé direito
com o tênis preto que estava bom e o pé esquerdo com o tênis branco, acreditem
ou não. A turma do futebol, no começo, achou engraçado. Mas ele continuou em
outras partidas com um pé branco e outro preto e eles se revoltaram. O Zé
estava confundindo o time, pois na correria não sabiam se ele era um ou dois
jogadores. Fizeram uma "vaquinha" e deram um tênis novo de presente pra
ele.
E agora, no Natal, aconteceu um fato
inédito. Quando tudo se acalmou depois da ceia, do Papai Noel, do amigo da onça
e das preces para o Menino Jesus, fui guardar alguns presentes que o Zé ganhou
(o aniversário dele é nas vésperas do Natal). Retirei algumas roupas e objetos
do armário para encaixar os presentes. Absorta na tarefa, deparei-me com uma
caixa de sapato no chão, perto dos outros presentes do Natal. Curiosa, abri e
encontrei um tênis preto, de cano alto, de material emborrachado sintético com
costuras brancas em zig-zag, solado de borracha, com design bonito, novinho. Surpresa,
perguntei ao Zé quem tinha dado para ele. Meio sem jeito e sem graça, respondeu
que não sabia, não se lembrava. Argumentei que era muito descaso ganhar um
presente bom como aquele e nem saber quem deu. Entusiasmado, ele calçou para
ver se servia e ficou encantado: era macio, confortável, não machucava, dava o
apoio necessário para a caminhada, daria até para correr e saltar. Andava pra
lá e pra cá no quarto, impressionado como alguém adivinhou exatamente como
deveria ser um tênis para ele, que tinha um pé tão difícil. Resolvemos tirar
uma foto e colocar no grupo de whatsApp da família, para descobrir quem foi e
agradecer. Ninguém se manifestou, apenas um filho perguntou: "será que era
para ele mesmo? " Quando li isso, lembrei-me de tudo: foi o Zé quem
comprou o tênis!!! Há uns seis meses atrás, eu tinha conseguido arrastá-lo a
uma loja de calçados pra comprar uma sandália. Ele gostou desse tênis e
insistiu em levá-lo. Eu disse pra não levar, que ele não usaria até a sandália
acabar. Ele insistiu, com cinismo: "Posso? " Daí levou, guardou no armário
e esqueceu. Quando desocupei o armário, o tênis veio junto e se misturou com os
outros presentes. Resumindo, foi ele quem deu o presente pra si mesmo. Ele não
se lembrava, nem eu.
Assim, mesmo o Drummond desejando
tantas coisas boas pra gente, só posso terminar com um texto divertido que li
na internet: "não sei quem inventou essa bagaça de melhor idade...Melhor
idade uma pinóia! Acho o papel e perco a caneta. Quando acho a caneta já não
sei mais onde coloquei o papel. Quando consigo unir os dois, cadê
"ozóculos"? E quando acho os três já não me lembro mais o que
escrever...Eu heim..Ô rái!!!"
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